Resumo para não especialistas
Este artigo apresenta um relato de experiência referente ao processo de elaboração de uma Gramática Pedagógica para o povo Wai Wai. Apresentamos inicialmente algumas informações sobre o povo e a língua Wai Wai pertinentes para uma melhor compreensão do produto final; em seguida explicamos no que consiste a Gramática Pedagógica, a configuração das unidades e as partes que compõem cada uma delas (texto, explicação, exemplos e exercícios), além de explicar a função ou o objetivo de cada uma dessas partes; finalmente, nas duas últimas sessões tratamos das etapas de desenvolvimento do material, apresentação da metodologia empregada, realização de oficinas de produção do material junto aos professores indígenas Wai Wai. O produto resultante é uma gramática escolar monolíngue em Wai Wai a ser utilizada pelos alunos dos ensinos fundamental e médio, que falem Wai Wai como língua materna ou como segunda língua num nível intermediário. O objetivo deste artigo é compartilhar uma experiência que pode servir como modelo ou ponto de partida para outros pesquisadores e/ou professores (indígenas ou não) que pretendam elaborar materiais de mesma natureza.
Introdução: algumas informações sobre o povo e a língua Wai Wai
Este artigo tem como objetivo principal apresentar o projeto e o processo de elaboração de uma Gramática Pedagógica para o povo indígena Wai Wai. O projeto, intitulado “Gramática Pedagógica Wai Wai”, faz parte de uma proposta mais ampla: o Projeto "Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente Contato na Região Amazônica", uma iniciativa do Museu do Índio (da Fundação Nacional do Índio – FUNAI) com apoio da UNESCO, que teve como intuito desenvolver materiais didáticos qualificados para comunidades indígenas, visando a promoção e a salvaguarda do patrimônio cultural destas; além da revitalização linguística de povos indígenas da Amazônia Legal. Tal iniciativa apoiou o desenvolvimento de gramáticas pedagógicas para cinco populações indígenas brasileiras, a saber: Djeromitxi, Paresi-Haliti, Sakurabiat, Wayoro e Wai Wai. O projeto esteve em vigência de novembro de 2022 a outubro de 2023.
A equipe do projeto Wai Wai contou com a participação de seis membros: a Profa. Dra. Angela Chagas (na função de coordenadora); três colaboradores não indígenas, a saber: os Profes. Ms. Anna Carolina Dias, Rosane Monteiro e Raniery Silva; além de dois professores indígenas da etnia Wai Wai: Sérgio Seexuci Wai Wai e Wiwson Wai Wai.
Os Wai Wai estão situados na fronteira do Brasil (às margens dos rios Anauá e Jatapuzinho, no estado de Roraima; Jatapu e Nhamundá, no estado do Amazonas; e Mapuera, no estado do Pará) com a Guiana (às margens do rio Essequibo). Sua população distribui-se em comunidades que somam entre trinta e trinta e cinco aldeias, situadas em quatro terras indígenas, a saber: Wai Wai (população estimada em 360 habitantes), Nhamunda-Mapuera (cerca de 2.300 membros), Trombetas-Mapuera (em torno de 800 moradores) e Kaxuyana-Tunayana (população em torno de 840 pessoas) segundo dados do site Terras Indígenas no Brasil.
As terras indígenas Nhamunda-Mapuera, Trombetas-Mapuera e Kaxuyana-Tunayana formam um complexo linguístico e cultural, denominado por seus habitantes de “Território Wayamu” (‘jaboti’ em língua Wai Wai) – ver Figura 01. Segundo os próprios Wai Wai, o termo wayamu foi escolhido para retratar seu território, pois o “casco entrecortado [do jaboti] representa a organização política e geográfica das aldeias que fazem parte desse território, ou seja, ao mesmo tempo em que possuem limites geográficos e autonomia na administração, fazem parte de um conjunto maior que engloba a todas, formando uma única identidade: a Wai Wai” (CHAGAS & CUNNINGHAM; 2022, p. 25) – ver Figura 02.
Figure 1. Figura 1. Mapa do Território Wayamu e seu entorno. Fonte: site do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (IEPE).
Figure 2. Figura 2. Representação Simbólica do Território Wayamu. Fonte: site do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (IEPE).
É importante mencionar que a população indígena que se autodenomina Wai Wai é composta por diversos grupos indígenas – em sua maioria de filiação linguística Karib, como: Wai Wai, Hixkaryana, Katwena, Tiriyó, Xerew, Makuxi, Tunayana, Karapawyana, Yukwaryana, Tikyana, Kaxuyana, Xowyana e Waimiri-Atroari, mas também de povos falantes de línguas Aruák, como Wapichana e Mawayana. Conforme Oliveira (2010, p.1), “o nome Wai Wai tem sido usado como uma identificação genérica por índios de vários grupos”. Sobre isso, Howard (1993, p. 261) afirma que “a identidade Wai Wai” não se sedimenta sobre a noção de “uma tribo”, mas sim “em uma categoria definida por critérios de comportamento e recursos compartilhados”. Assim, Wai Wai consiste em uma supra identidade étnica compartilhada por diversos grupos étnicos que co-habitam o território Wayamu.
A língua Wai Wai pertence à família linguística Karib e as propostas mais recentes de classificação interna para essa família (cf. MEIRA, 2006; GILDEA, 2012), posicionam-na ao lado do Hixkaryana, formando um subgrupo denominado “Waiwai” (GILDEA, 2012) ou “Waiwai-Hixkaryana” (MEIRA, 2006), que junto com o Katxuyana compõe o grupo “Parukotoano” da família.
Figure 3.
Conforme mencionado, a população que se autodefine Wai Wai é na verdade multiétnica, formada por membros de distintas comunidades indígenas falantes, principalmente, de línguas Karib, mas também de algumas Aruák, além do português e do inglês, dado seu contato com pessoas não indígenas que vivem no Brasil e na Guiana. Como pode ser observado, a língua Wai Wai é falada num contexto multilíngue, onde goza da condição de língua franca, o que segundo Chagas & Cunningham (2022, p. 27):
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“é consequência da intensa relação histórico-político-social compartilhada pelos diversos grupos étnicos da região, onde a condição dominante de um desses grupos (o Wai Wai) levou à consequente ‘dominação linguística’, instaurando-se aí uma comunidade linguística falante da língua Wai Wai”.
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Nesse contexto, o Wai Wai é aprendido tanto como primeira língua (por aqueles que são filhos de pais e mães Wai Wai; ou pelos que são filhos de casamentos interétnicos entre um Wai Wai e um membro de outro grupo indígena), quanto como segunda língua (nesta situação, por membros de outras etnias, que pela proximidade geográfica com os Wai Wai e pela necessidade de intercâmbio com eles, precisaram aprender sua língua).
Na condição de língua franca, utilizada pela variedade de povos que habitam o Território Wayamu, os contextos de uso do Wai Wai são bastantes amplos e variados. Assim, a língua é utilizada em situações domésticas, pelas pessoas que a falam como primeira lingua, mas é tambem “o idioma utilizado em situações de contato interétnico por pessoas que possuem distintas línguas maternas” (CHAGAS & CUNNINGHAM; 2022, p. 27). É a língua utilizada nas escolas das comunidades indígenas da região para ministrar o conteúdo das diversas disciplinas ensinadas e consequentemente é a língua na qual as crianças são alfabetizadas, apesar da carência de material didático para esse fim – o que justifica nossa iniciativa quanto à proposição de um material didático monolíngue para o ensino da língua no ambiente escolar. Além disso, é também a língua utilizada nos cultos das igrejas das comunidades, nos festejos e nas celebrações comuns dos grupos co-residentes, bem como nas assembleias que deliberam questões de interesse coletivo.
Como consequência desse cenário, a língua Wai Wai é falada por praticamente todos os habitantes do Território Wayamu (entre 2.500 a 3.500 pessoas), seja como língua materna, seja como segunda língua, o que garante um alto nível de transmissão intergeracional do idioma.
Apesar do status de prestígio na região em que é falada e da taxa de transmissão que se mantém elevada, a língua Wai Wai pode ser considerada sob ameaça de extinção já que o número total de falantes, além de impreciso, é bastante reduzido, uma vez que, segundo a UNESCO, para que uma língua seja considerada segura, deve ter um mínimo de 100.000 falantes – realidade muito aquém do quantitativo de falantes da língua Wai Wai, o que a deixa em um contexto severo de vulnerabilidade.
A partir desta breve contextualização do povo e da língua Wai Wai, passaremos, nas seções seguintes, à descrição do material didático propriamente dito (2. O que é a Gramática Pedagógica Wai Wai?); do seu processo de elaboração (3. Como foi feita a Gramática Pedagógica? Procedimentos teórico-metodológicos sobre a elaboração da Gramática Pedagógica Wai Wai); e das decisões tomadas com base na realidade linguística Wai Wai, fundamental para a caracterização do produto final (4. Reflexões sobre a elaboração de materiais pedagógicos para comunidades indígenas: o caso Wai Wai).
1. O que é a Gramática Pedagógica Wai Wai?
A Gramática Pedagógica Wai Wai, que no presente momento se encontra em fase final de elaboração, consiste em um material didático monolíngue, totalmente escrito na língua da comunidade envolvida – ou seja, em Wai Wai – a partir de uma metodologia que prioriza contextos comunicativos reais de uso da língua. Nessa metodologia, evita-se o uso de metalinguagem, isto é, de conceitos técnicos linguísticos para a explicação das estruturas gramaticais da língua-alvo que serão apresentadas na gramática. As definições das estruturas linguísticas são elaboradas a partir do seu uso pragmático, em linguagem acessível aos professores indígenas, que em sua maioria não têm uma formação específica no campo da Linguística e por conseguinte não possuem familiaridade com termos e conceitos específicos dessa área do conhecimento.
A gramática é composta por 22 unidades, cada uma explorando o uso de uma determinada estrutura gramatical, tais como: pronomes e prefixos pessoais, tempos verbais, posse, advérbios de lugar, dêiticos, tipos de frases (negativas, interrogativas, imperativas), apenas para citar alguns exemplos.
Cada unidade da Gramática Pedagógica está dividida em quatro partes: (i) um texto (Yehtopo) que pode ser de qualquer gênero (diálogo, receita, crônica, etc.) e no qual já aparece a estrutura a ser estudada na unidade; (ii) uma explicação (Ekatîmtopo) do emprego da estrutura em questão, sem o uso de termos técnicos; (iii) exemplos (Enpotopo) contextualizados do uso da estrutura; e (iv) exercícios (Ceyuhsom) que proporcionam aos estudantes diferentes possibilidades de usar a estrutura estudada na unidade, tanto de forma oral quanto escrita e com atividades que possuem diferentes graus de controle sobre as respostas dadas – isto é, exercícios que vão desde atividades mais controladas, cujas respostas são previsíveis, até atividades menos controladas, cujas respostas são livres. A título de ilustração das quatro partes constituintes de uma unidade da Gramática Pedagógica, apresentamos a unidade elaborada para tratar do uso dos morfemas de passado distante na língua Wai Wai.
Na Figura 3, vemos uma ilustração da primeira parte constitutiva de uma unidade da Gramática Pedagógica Wai Wai: o texto (Yehtopo). Como é possível observar, já nesta primeira parte da Unidade aparece em destaque (cor vermelha e em itálico) a estrutura que será estudada na unidade. Essa é uma maneira de levar o usuário a se familiarizar com a forma gramatical em escopo.
Figure 4. Figura 3. Texto (Yehtopo).
A presença da estrutura no texto foi possível porque, previamente, foi discutido com os professores Wai Wai que participaram da elaboração desta unidade os contextos reais de uso dos morfemas verbais {kn̂e} e {ken̂e} que marcam o passado distante na língua (em contraste com outros morfemas de tempo que codificam outras nuances de passado, como o recente e o imediato – temas de outras unidades da Gramática).
É claro que na condição de falantes nativos, todos sabiam usar adequadamente os morfemas em foco, no entanto, quando pensamos em ensino de língua, é preciso alcançar um outro nível de reflexão sobre as estruturas linguísticas, de modo a poder didatizá-las. Assim, ao refletirem e discutirem sobre os contextos em que utilizam tais formas, espontaneamente os professores sugeriram que o texto fosse sobre uma história bem antiga do povo, contada pelos seus antepassados. Diversas opções foram oferecidas por eles e dentre elas, a escolhida foi “Mawtohrî” (“Pedra da Guariba”). Esse debate prévio sobre o uso da estrutura com os professores foi de fundamental importância, pois possibilitou o surgimento de um texto, cujo tema, suscita de maneira natural o uso da estrutura gramatical a ser utilizada na unidade.
A segunda parte de uma unidade da Gramática é a explicação (Ekatîmtopo) do uso da estrutura (que apareceu em destaque inicialmente no texto), que exemplificamos na Figura 4:
Figure 5. Figura 4. Explicação (Ekatîmtopo).
A Figura 4 permiti-nos dar uma ideia de como foram elaboradas as explicações de uso das estruturas. Pode ser notado, a partir da tradução em português, que não há nenhum termo técnico específico da área da Linguística, dentre os vários que poderiam ter sido utilizados no caso de uma definição que tivesse linguistas como público-alvo.
A explicação centrou-se em apresentar fundamentalmente o contexto discursivo em que tais estruturas são utilizadas. Mesmo no caso em que foi necessário falar da posição que os morfemas ocupam na estrutura das palavras em que ocorrem, evitamos chamá-los de sufixos, dado que ocorrem após a raiz verbal. Em vez disso, a explicação indicou que as formas ocorrem no fim das palavras. O mesmo se fez em relação à distribuição das formas estudadas: no lugar de dizer que {kn̂e} é utilizado quando o sujeito do verbo está no singular e que {ken̂e} é usado quando encontra-se no plural, dissemos que as formas são usadas quando uma atividade (não uma ação) é realizada por uma única pessoa ou por mais de uma, respectivamente.
Colocamos aqui propositalmente os termos técnicos em versalete para evidenciar o quanto de metalinguagem foi evitada no momento da elaboração de uma explicação que tem como destinatários professores e alunos da comunidade indígena, isto é, um público não especializado em Linguística.
A terceira parte da unidade consiste na apresentação de exemplos (Enpotopo) de uso da estrutura para além daqueles já utilizados no texto que inicia a unidade, conforme pode ser visto na Figura 5. O objetivo é expor ao usuário outras amostras que reforcem o contexto pragmático em que a estrutura em foco é utilizada – neste caso, o passado distante. Podemos contemplar a terceira parte da unidade na imagem seguinte:
Figure 6. Figura 5. Exemplos (Enpotopo).
Por fim, a última parte componente da unidade é a dos exercícios (Ceyuhsom), que como deve ser dedutível objetivam promover aos usuários o treino do uso da estrutura estudada. Como já mencionado, anteriormente, os exercícios possuem diferentes níveis de controle, indo desde os que possuem respostas previsíveis por parte dos alunos, até aquele com perguntas cujas respostas são livres de modo que o professor não tem como predizer qual será a de cada aluno. Há também diversidade na maneira de responder às questões propostas, podendo aparecer exercícios que privilegiem a oralidade ou a escrita, ou que os alunos possam responder de forma individual ou em duplas ou pequenos grupos e existe ainda a possibilidade de realizar a atividade em sala de aula ou como tarefa para casa, normalmente, envolvendo outros membros da família. Devido à variedade de tipos de exercícios possíveis, apresentaremos apenas 3, a título de ilustração.
O exercício a seguir (Figura 06) é um exemplo de atividade totalmente controlada, que prevê de maneira inequívoca qual será a resposta dos alunos. Veja que o comando pede objetivamente que sejam circuladas as palavras que indicam que os eventos narrados aconteceram num passado distante – tema da unidade. Assim, o aluno é levado a procurar no texto as palavras com os morfemas que têm a função descrita na explicação da unidade.
Figure 7. Figura 6. Ceyuhsom – Exercício totalmente controlado.
O exercício trazido na Figura 7 é o caso de uma atividade semi-controlada, pois é previsto que o estudante vá utilizar a estrutura em foco, já que isso é requerido no comando da questão, embora não seja exatamente previsível o que cada um irá escrever em suas respostas. Além disso, este exercício tem um grau de dificuldade maior que o apresentado na Figura 6, onde os aprendizes tinham apenas que identificar e circular a ocorrência da estrutura, neste o aluno necessita saber não apenas ler, mas também escrever na língua. Outra coisa interessante que este exercício apresenta é o uso de um exemplo de questão respondida como modelo que deve ser seguido pelos alunos. Isso facilita a compreensão sobre o que deve ser feito na questão.
Figure 8. Figura 7. Ceyuhsom – Exercício semi-controlado.
O exercício visto na Figura 8, abaixo, é um exemplo de uma atividade não controlada ou livre, pois o professor não tem como antever as respostas dadas por cada aluno. No caso em questão, o nível de dificuldade é um pouco maior que no exercício apresentado na Figura 7, pois ele não possui modelagem, ou seja, exemplo a ser seguido; além disso, o aluno é responsável por construir a frase inteira sozinho e não apenas completar uma parte faltante. Outra particularidade deste exercício é que ele promove o uso da oralidade, além da escrita, pois como pode ser observado, para responder às questões, os alunos precisam fazer uma entrevista com uma pessoa idosa que irá contar-lhes algo da sua infância e nesse relato, os alunos irão ouvir o uso da estrutura em uma situação real comunicação.
Figure 9. Figura 8. Ceyuhsom – Exercício não controlado.
É importante observar que todos os exercícios propostos foram elaborados de maneira a contemplar o uso das duas estruturas possíveis para marcar o passado distante na língua Wai Wai, ou seja, envolvendo uma ou mais pessoas na atividade realizada.
Outro cuidado sempre tomado na elaboração dos exercícios foi quanto à contextualização das atividades, evitando comando que levassem o aluno a um treino mecânico e sem sentido da estrutura estudada. O exercício 1, por exemplo, não pede que os alunos circulem diretamente as estruturas {kn̂e} e {ken̂e} (ou as palavras que as carregam), mas sim as palavras que indicam que os eventos no texto ocorreram há bastante tempo. É óbvio que para fazer isso, os alunos precisam ter entendido a função da estrutura na língua e da maneira como o exercício foi elaborado, ele permite que os alunos relacionem o uso de uma estrutura linguística pontual a uma nuance de significado importante para a compreensão global do texto.
De maneira análoga, no exercício 4 não há um comando que simplesmente diga aos alunos para passarem as frases do presente para o passado distante. Houve uma preocupação em criar um contexto discursivo propício para o uso das formas; no caso, algumas mudanças de hábitos do povo Wai Wai através do tempo, confrontando o presente com a antiguidade.
O exercício 5 propõe uma entrevista com a pessoa mais velha da casa do aprendiz, uma pessoa que provavelmente já viveu várias décadas e que pode falar de sua infância utilizando o morfema alvo da unidade com mais naturalidade – diferentemente do caso de o aluno ter que entrevistar um irmão ou um primo seu, provavelmente alguém bastante jovem, cuja infância não teria transcorrido há tanto tempo como a do idoso e que talvez impossibilitasse o uso do morfema esperado.
Há ainda outros exercícios elaborados para a mesma unidade – além de outros bastante distintos dada a natureza da estrutura gramatical relacionada a eles – que poderiam ainda serem discutidos aqui, mas nosso objetivo é apenas dar exemplos de algumas preocupações e de alguns cuidados que devem estar em vista de quem prepara um material como este. Certamente, não cabe ao presente artigo esgotar todas as possibilidades de atividades propostas.
Todas as decisões metodológicas tomadas na confecção da Gramática Pedagógica aqui apresentada foram visando os usuários da mesma, que são alunos do Ensino Fundamental e Médio, residentes nas diversas aldeias Wai Wai existentes ao longo do rio Mapuera e afluentes, estudantes das escolas indígenas dessas comunidades e falantes da língua Wai Wai enquanto língua materna ou como falantes desta como segunda língua, com fluência intermediária.
Essa última informação é o que justifica a produção e posteriormente a publicação do material exclusivamente em língua Wai Wai. Como deve ter sido notado nas imagens que ilustraram as partes constituintes da Gramática, há uma tradução em português de todo o conteúdo escrito em Wai Wai. Mas é importante esclarecer que a presença dessa tradução é temporária e que se fez necessária para que os membros não indígenas do projeto pudessem não somente compreender adequadamente o conteúdo, como também coordenar, conduzir e revisar as atividades juntos aos professores indígenas envolvidos. Essa tradução possibilita também que o consultor geral e proponente da metodologia aplicadas às Gramáticas Pedagógicas, Prof. Dr. Luiz Amaral, consiga acompanhar o que foi desenvolvido por cada equipe e avaliar qualitativamente cada uma das unidades. A tradução também será útil para os diagramadores que farão a editoração do material, que para fazer escolhas adequadas de fontes, cores, formas, etc precisam compreender o que consta em cada parte da Gramática. Após a finalização de todas as etapas, considerando elaboração, revisão e diagramação, as traduções para o português serão excluídas, restando tão somente a versão em língua Wai Wai.
A proposta dessa Gramática garante aos Wai Wai o usufruto de um direito dos povos originários previsto em lei no Brasil, pois o fortalecimento das línguas, bem como a elaboração de material didático específico para este fim são previstos no parágrafo 2º do artigo 79 da LDBEN, como pode ser lido abaixo:
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Art. 79 - A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
§ 1º- Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.
§ 2º- Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:
- fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena;
- manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas;
- desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;
- elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado. (BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.Artigo 79, §2º.) (Grifo nosso).
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A principal consequência desse tipo de ação é o desenvolvimento de práticas e de produtos que venham melhorar a qualidade de vida das populações indígenas, seja no ambiente escolar – no que tange ao ensino-aprendizagem de línguas – seja quanto a iniciativas que contribuam para a manutenção e/ou revitalização das línguas indígenas no seio de suas respectivas comunidades.
Dessa forma, o material didático proposto tem como objetivo fundamental contribuir para o fortalecimento do ensino da língua Wai Wai no ambiente escolar, o que consequentemente ajuda na valorização da língua e na elevação do seu status na comunidade de fala, retardando processos de substituição linguística por outra(s) língua(s) politicamente dominante(s).
Outro benefício do material que pode ser destacado é quanto à consolidação da escrita da língua, pois embora haja apenas uma ortografia em vigência para o Wai Wai, grande parte das palavras utilizadas estava sendo escrita pela primeira vez, de modo que os participantes por vezes ficavam hesitosos quanto ao seu registro, precisando discutir longamente sobre como determinada palavra seria registrada, levando em consideração inclusive as diferenças de pronúncia existente em distintas aldeias.
Após esta breve caracterização do que consiste a Gramática Pedagógica Wai Wai, faremos nas próximas duas seções a apresentação da metodologia empregada e das reflexões que embasaram a produção desse material didático.
2. Como foi feita a gramática pedagógica? Procedimentos teórico-metodológicos sobre a elaboração da Gramática Pedagógica Wai Wai
Os trabalhos da equipe tiveram início em novembro de 2022, durante a “Oficina de Metodologia para Desenvolvimento de Gramáticas Pedagógicas”, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Amaral (UMass/Amherst), na cidade de Belém-PA/Brasil. O objetivo dessa oficina foi apresentar, aos participantes dos cinco projetos, a metodologia que seria empregada na elaboração dos materiais didáticos a serem desenvolvidos, conforme já anteriormente exposto. As equipes contaram com a participação de membros das sociedades indígenas envolvidas que se deslocaram de suas respectivas comunidades até a cidade de Belém para participar da oficina.
Nesse primeiro encontro, como um exercício de aplicação da metodologia proposta, a equipe do projeto Wai Wai conseguiu elaborar versões preliminares de duas unidades da Gramática Pedagógica. Tais unidades serviram como modelos para as que foram posteriormente desenvolvidas junto com um número maior de professores indígenas da etnia Wai Wai, o que aconteceu nos meses de março e abril de 2023, quando a equipe de pesquisadores não indígenas realizou viagem de campo para a produção das unidades da Gramática Pedagógica Wai Wai. A equipe visitou duas comunidades Wai Wai: a aldeia Tawana, localizada na Terra Indígena Katxuyana-Tunayana; e a aldeia Mapuera, na Terra Indígena Trombetas-Mapuera – ambas no estado do Pará/Brasil.
Nessa viagem, uma segunda oficina foi realizada, a fim de repassar a metodologia a um número maior de professores indígenas que pudessem colaborar com a proposta e assim otimizar o tempo disponível em campo para a elaboração da gramática. Então, na “Oficina de Produção da Gramática Pedagógica Wai Wai” realizada na aldeia Mapuera e coordenada pela Profa. Dra. Angela Chagas (com a colaboração dos demais membros não indígenas do projeto), foram elaboradas treze novas unidades, graças ao envolvimento de todos os 14 professores da Escola Indígena Wai Wai, que se sentiram muito comprometidos com a proposta desde a sua apresentação.
Tal oficina foi realizada nos turnos da manhã e da tarde na escola da aldeia Mapuera, de segunda à sexta-feira, nos meses de março e abril de 2023. Os 14 professores participantes se revezavam, frequentando a Oficina no seu contraturno de aula na escola indígena. Assim, os professores que trabalhavam de manhã participavam da Oficina na parte da tarde e vice-versa. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que todos os professores puderam se envolver no projeto, o desenvolvimento das atividades não afetou o cronograma de aulas da escola local.
Os primeiros encontros foram destinados à apresentação da metodologia a ser seguida, exemplificada com as duas primeiras unidades elaboradas pelos professores indígenas Sérgio Wai Wai e Wiwson Wai Wai ainda na cidade de Belém, em novembro de 2022.
Após a assimilação da metodologia por parte do grupo maior de professores indígenas, elaboramos junto com eles uma lista de quais estruturas gramaticais eles consideravam mais pertinentes de serem incorporadas à Gramática, já que não era possível inserir todas as estruturas linguísticas Wai Wai no material didático.
A partir da definição dos temas para a elaboração das unidades e da apropriação metodológica pelos professores indígenas sobre o desenvolvimento dessas unidades, considerando suas quatro partes constitutivas (i. texto, ii. explicação, iii. exemplos e iv. exercícios) e seus respectivos objetivos, os professores indígenas indicaram voluntariamente as partes das unidades que gostariam de elaborar, dada sua experiência docente ou sua aptidão pessoal. Assim, alguns professores julgaram ter mais facilidade para elaborar os textos do que os exercícios, por exemplo; já outros preferiram elaborar os exercícios alternativamente às explicações; outros ainda preferiram contribuir com as ilustrações das unidades, etc. Dessa forma, tacitamente, pequenos grupos de professores indígenas foram formados considerando-se as aptidões e preferências de cada participante.
Para a elaboração de uma unidade específica, era escolhido um dos temas (estrutura linguística) previamente elencados. Em seguida, a coordenadora e linguista principal do projeto fazia uma breve explanação acerca da estrutura gramatical em foco para os professores indígenas. Como já mencionado, todos eram falantes nativos e, portanto, todos sabiam usar plenamente todas as estruturas linguísticas Wai Wai; no entanto, para o tipo de atividade desenvolvida fazia-se necessário despertar outro tipo de consciência linguísticas que normalmente não são óbvias ou conscientes para os falantes nativos de qualquer língua.
Após esse momento inicial – que de expositivo frequentemente tornava-se dialógico, já que quase sempre os professores indígenas interagiam ou com questionamentos sobre o funcionamento de uma estrutura ou com contribuições a respeito de sua perspectiva sobre o uso da mesma, na condição de falantes nativos – os professores indígenas passavam ao desenvolvimento das partes da unidade que havia sido designada para o seu grupo.
Assim, enquanto um grupo de professores elaborava o texto contendo a estrutura a ser estudada na unidade, outro grupo elaborava as possibilidades de explicação do uso da mesma estrutura, outro elencava exemplos contextualizados, outro elaborava os exercícios e outro grupo fazia as ilustrações necessárias tanto para fins estéticos quanto para ajudar muitas vezes na resolução de exercícios.
Os grupos de professores indígenas eram assessorados pelos quatro linguistas do projeto, que ajudavam tirando dúvidas na execução das tarefas, discutindo possibilidades de elaborações e conferindo os resultados de modo a garantir não só que a estrutura linguística em questão estava presente em cada uma das partes da unidade em desenvolvimento e sendo abordada de maneira convergente com a metodologia proposta; mas também que havia coesão entre as partes desenvolvidas.
É importante mencionar que embora as discussões entre os linguistas e os professores indígenas tenha acontecido em português (língua comum aos dois grupos), a produção escrita da Gramática se deu exclusivamente em língua Wai Wai, já que foi realizada pelos professores indígenas.
Como observado previamente, a versão preliminar da Gramática conta com uma tradução para o português de todo o seu conteúdo, que foi realizada conjuntamente pelos professores indígenas e pelos linguistas do projeto à medida que cada parte de uma unidade era considerada finalizada. Essa tradução provisória é necessária para uma melhor avaliação do material por parte dos linguistas envolvidos no projeto, incluindo o consultor geral, Prof. Dr. Luiz Amaral. Além disso, a tradução é importante também para a equipe de diagramação e editoração, responsável pela apresentação final do produto. No entanto, dado o público-alvo (alunos e professores das escolas indígenas Wai Wai), o material será publicado somente em língua Wai Wai. Com essa metodologia de trabalho, durante a oficina na Aldeia Mapuera, foi possível elaborar versões preliminares de 13 unidades da Gramática Pedagógica Wai Wai.
No período entre 04 e 13 julho de 2023, foi realizada uma nova “Oficina de Produção de Gramática Pedagógica para Línguas Indígenas” na cidade de Belém (PA). Os professores indígenas Sérgio Seexuci Wai Wai e Wiwson Wai Wai foram trazidos de suas comunidades para se reunirem com os linguistas da equipe, na Universidade Federal do Pará, onde a oficina foi realizada. Durante esse encontro foram produzidas sete novas unidades (totalizando vinte e duas) da Gramática Pedagógica Wai Wai.
De 18 a 28 de agosto de 2023, os professores Sérgio e Wiwson Wai Wai retornaram à Belém para realizar a revisão de todas as unidades elaboradas anteriormente. Essa revisão incluiu a reformulação de alguns textos, reelaboração de exercícios, correção ortográfica e novas ilustrações.
3. Reflexões sobre a elaboração de materiais pedagógicos para comunidades indígenas: o caso Wai Wai
É relevante mencionar que algumas escolhas metodológicas que embasaram a elaboração da Gramática Pedagógica Wai Wai foram também pautadas nas considerações feitas por Amaral (2020), que propõe e discute seis estratégias sobre as quais se deve refletir antes e durante a preparação de materiais pedagógicos para populações indígenas. Embora, segundo o autor, nem sempre tenhamos respostas precisas ou consigamos conciliar todas as estratégias elencadas, é fundamental considerá-las uma vez que impactam de maneira significativa nos resultados do produto. Discutiremos abaixo as seis estratégias propostas por Amaral (op. cit), relacionando cada uma delas com a realidade Wai Wai.
O primeiro elemento discutido pelo autor e que foi de fundamental importância para a caracterização do produto final de nosso projeto é o contexto de uso do material em questão. Segundo Amaral (idem, p. 150) quando se trata deste tópico, o máximo de informação a respeito da utilização do material é bem-vinda. Para o autor, não são suficientes questionamentos sobre ‘onde, por quem e em que condições o material será utilizado’. Outras reflexões relativas ao contexto de uso são necessárias, tais como:
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“o nível de vitalidade linguística da comunidade; os usos atuais da língua, incluindo as situações comunicativas nas quais é mais provável que a língua seja encontrada; o uso da língua pelos aprendizes em diferentes cenários cotidianos; a existência de um ambiente formal de educação para o material ser utilizado; a presença de professores que falem a língua; a existência de programas formais de língua e seus usos no sistema escolar; a formação educacional dos professores de língua e suas práticas comuns em sala de aula; o apoio da comunidade para abordagens de educação formal em suas línguas nativas”. (Amaral; 2020, p. 150) – tradução nossa.
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Sobre os pontos abordados acima por Amaral, sabemos que o nível de vitalidade da língua Wai Wai se mantém alto, dado que as crianças ainda a aprendem como língua materna em todas as aldeias. A língua é utilizada em todos os contextos diários da comunidade, como no ambiente doméstico pelos seus falantes nativos, mas também como língua franca nas situações em que estão presentes falantes nativos de outras línguas que co-habitam os mesmos territórios que os Wai Wai, como nos cultos, nas assembleias e na própria escola. Dessa forma, os usuários da Gramática utilizam cotidianamente a língua na qual o material foi elaborado.
Quanto ao ambiente formal de educação no qual o material poderá ser utilizado, a Prefeitura Municipal de Oriximiná-PA, mantém ativos 20 anexos da “Escola Municipal de Ensino Fundamental Indígena Wai Wai” em distintas aldeias ao longo do rio Mapuera (no estado do Pará). Uma unidade da “Escola Estadual Indígena WaiWai” funciona na aldeia Jatapuzinho e é mantida pelo Governo do Estado de Roraima, onde funcionam o ensino fundamental e médio – esta escola atende a cinco comunidades Wai Wai.
Todos os professores são falantes da língua Wai Wai, embora vários deles sejam falantes também de outras línguas que circulam nas comunidades. Os professores geralmente ou possuem nível superior completo ou estão com sua formação em curso. A presença de escolas em quase todas as aldeias Wai Wai e a presença do estudo da língua indígena como componente curricular pode ser considerado um indício de que este povo apoia o ensino formal de sua língua.
Outro tópico levantado por Amaral (idem, p. 151) que deve ser considerado na elaboração desse tipo de material diz respeito aos objetivos pedagógicos. Segundo o autor, eles devem estar diretamente atrelados e emergir das necessidades encontradas nos contextos de uso da língua. No caso aqui exposto por nós, todos os membros do grupo são falantes da língua Wai Wai, embora não sejam monolíngues. Isto é, além do Wai Wai, grande parte dos membros da comunidade (incluindo as crianças) falam outras línguas Karib e alguns também o português e o inglês. No entanto, a língua Wai Wai por ser a única comum a todos é a que predomina nos distintos usos cotidianos, inclusive na escola – onde os conteúdos das diversas disciplinas são ministrados nessa língua pelos professores indígenas. Por esse motivo, foi proposto um material totalmente monolíngue, voltado para o ensino do Wai Wai para alunos da educação básica, na condição de língua materna – já que praticamente todos os usuários aprendem a falá-la ainda na infância. Em outras palavras, o principal objetivo pedagógico do material proposto não é ensinar a língua, mas sim ensinar sobre a língua.
Estreitamente relacionado ao tópico anterior, o terceiro ponto considerado por Amaral (2020) é o modelo de usuário/aprendiz. Para ele (idem, p. 153), o público-alvo pretendido é um aspecto que deve ser cuidadosamente considerado na elaboração de material pedagógico. É fundamental conhecer a formação linguística dos alunos tanto em termos de aquisição quanto em termos educacionais. No âmbito da aquisição, como já exposto em outros trechos deste artigo, os alunos Wai Wai aprendem a falar a língua em ambiente doméstico e não na escola, por isso, afirmamos anteriormente que o objetivo pedagógico da Gramática não é ensinar Wai Wai, mas sim ensinar sobre Wai Wai. O ambiente escolar é onde ocorre a aquisição da modalidade escrita da língua, ou seja, onde os alunos são alfabetizados, aprendendo a ler e escrever na língua materna. É importante mencionar que o ensino da língua portuguesa em ambiente escolar só acontece a partir do segundo ciclo do Ensino Fundamental, ou seja, somente a partir do 6º ano. Nas séries iniciais (do 1º ao 5º ano) é exclusivo o ensino da língua Wai Wai nas escolas indígenas. Assim, quando os alunos entram em contato com a escrita do português na escola, eles já são alfabetizados em Wai Wai. Dado esse contexto, o perfil de usuário pretendido para o material em questão é de alunos falantes de Wai Wai como língua materna ou como segunda língua (com fluência intermediária), em ambos os casos, capazes de ler e escrever em Wai Wai.
O quarto tópico elencado é sobre a teoria de aprendizagem, que deve ser escolhida considerando-se: i. o modelo do aprendiz, ii. o contexto de uso e iii. os objetivos do material. De acordo com Amaral (op. cit.), a teoria de aprendizagem vai discutir maneiras pelas quais o aprendiz desenvolve seu conhecimento sobre uma determinada área em função de objetivos pedagógicos específicos. Para o autor (p. 156), uma teoria de aprendizagem é o núcleo das escolhas pedagógicas que guiam a preparação do material. É ela que indica o que se pode esperar como resultado quando se propõem qualquer tipo de elemento pedagógico. Ela também justifica os tipos de elementos utilizados no material (como no caso da gramática pedagógica em questão, em que usamos textos, explicação do uso da estrutura, exemplos de uso e exercícios); a ordem em que esses elementos estarão dispostos; além da apresentação de todas as escolhas feitas. Além de tudo isso, a teoria de aprendizagem também possibilita uma melhor avaliação do quanto o material desenvolvido está adequado para o alcance dos objetivos pedagógicos traçados. Conforme mencionado na seção 2, a Gramática Pedagógica Wai Wai foi elaborada, conforme a metodologia proposta pelo Prof. Dr. Luiz Amaral (UMass/Amherst), na “Oficina de Metodologia para Desenvolvimento de Gramáticas Pedagógicas”. Tal metodologia prioriza contextos comunicativos reais e evita o uso de metalinguagem, explicando as estruturas linguísticas a partir do seu uso pragmático.
O quinto elemento trazido para a reflexão para a elaboração de materiais didáticos para comunidades indígenas por Amaral (op. cit., p. 157) é a abordagem pedagógica. No projeto de elaboração de Gramáticas Pedagógicas do Museu do Índio (FUNAI), Amaral optou por seguir a abordagem utilizada em gramáticas pedagógicas de línguas europeias. Nessa proposta, cada tópico gramatical é inserido através de uma variedade de cenários culturalmente relevantes para os usuários pretendidos. As estruturas linguísticas foram divididas em pequenas unidades pedagógicas a fim de isolar usos específicos para cada item morfológico. Podemos citar como exemplo na Gramática Pedagógica Wai Wai duas unidades distintas que tratam dos mesmos itens morfológicos, a saber: os prefixos marcadores de pessoa. Na língua Wai Wai, há duas séries de prefixos pessoais: Série I e Série II. Ambas ocorrem com os verbos transitivos (em distribuição complementar guiada por hierarquia de pessoa: 1, 2, 1+2 > 3), indicando o participante do discurso mais proeminente envolvido na ação codificada pelo verbo, independentemente de sua função sintática (Sujeito ou Objeto Direto). Interessa-nos aqui os prefixos da Série II[1] que ocorrem quando o Sujeito do verbo é uma 3ª pessoa (ou seja, um não participante do discurso) e age sobre um Objeto indexado por um participante do discurso (1, 2, 1+2 pessoas)[2]. Ou seja, os prefixos pessoais da Série II, no verbo transitivo, marcam a realização do Objeto, enquanto o Sujeito de 3ª pessoa é não marcado[3]. Esse mesmo grupo de prefixos ocorre também com os nomes possuíveis da língua Wai Wai, mas neste caso, indicando a figura do possuidor, em construções genitivas como em: meu dente (o-jorɨ), teu dente (a-jorɨ), nosso dente (k-jorɨ), dente dele (Ø-jorɨ).
O importante a se dizer aqui é que, embora o conjunto de afixos seja o mesmo (Série II), ele possui funções distintas quando de sua ocorrência com verbos e como nomes; e, por esse motivo, foi necessário desenvolver unidades separadas na Gramática Pedagógica Wai Wai para explicar cada um desses usos em particular, com seus respectivos exemplos e exercícios: uma (Prefixos Pessoais nos Verbos) voltada para a indicação de pessoas que realizam as atividades mencionadas pelos verbos e outra (Prefixos Pessoais nos Nomes) que indica a pessoa que possui determinada coisa. Essa escolha facilita para o usuário a compreensão da função, ou neste caso das funções, de uma determinada forma ou conjunto delas a partir de seu uso pragmático. Ou seja, parte-se da função para a forma e não o inverso. Do contrário, ter-se-ia uma mesma unidade da Gramática Pedagógica com todos os prefixos (Séries I e II) e suas distintas possibilidades de uso – sendo que ambas ocorrem com os verbos transitivos, mas somente a Série I ocorre com os intransitivos, assim como somente a Série II ocorre com os nomes – o que dificultaria a elaboração de uma explicação única e concisa que abarcasse todas essas possibilidades, já que são bastante distintas; além da miscelânia de uso das formas propostas nos exercícios. Isto é um exemplo de que neste tipo de material desenvolvido o escopo da função linguística tem predomínio sobre a estrutura em si e por si.
O sexto item apontado por Amaral (op. cit.) como relevante engloba descrição e teoria linguística. Segundo o autor, informações prévias sobre língua em escopo são desejáveis, pois elas auxiliarão num maior conhecimento das estruturas linguísticas e/ou de contextos comunicativos que poderão auxiliar grandemente na elaboração do material desejado.
No caso específico do Wai Wai, já havia dois trabalhos relativos à fonologia: um elaborado por Neill Hawkins (1952) – no qual se baseia a ortografia desenvolvida para a língua – e outro por Mara Acácio (2011). Sobre o nível gramatical, há um estudo preliminar sobre a morfologia do verbo, feito por Neill Hawkins & Robert Hawkins (1953), outro sobre a morfologia do substantivo, descrita por Neill Hawkins (1962) e um trabalho mais bem detalhado que cobre diversos aspectos da gramática dessa língua, elaborado por Robert Hawkins (1998). Esse material nos ajudou a pensar em quais estruturas gramaticais seriam interessantes e relevantes de serem incluídas no material didático, para serem abordadas pelos professores indígenas a partir de uma perspectiva pedagógica, baseada no uso (conforme já mencionado). Além disso, o conhecimento obtido a partir das descrições linguísticas pré-existentes contribuíram para nosso maior entendimento do funcionamento das estrutura abordadas e facilitaram nosso trabalho de pensá-las de um ponto de vista menos formal, obviamente com a participação imprescindível dos falantes nativos que participaram de todos os processos aqui mencionados: desde a escolha conjunta das estruturas linguísticas que entrariam na Gramática Pedagógica até as explicações dos usos pragmáticos e discursivos de tais estrutura – que na maioria das vezes não é descrito em trabalhos acadêmicos pautados em teorias linguísticas e que têm como público-alvo outros linguistas.
O importante a se dizer aqui, seguindo o raciocínio de Amaral (op. cit.), é que uma descrição linguística prévia é fundamental para a elaboração deste tipo de material e que mesmo esta sendo pautada em teorias mais formalistas (que partem da forma para a compreensão da função e do uso) ela não é incongruente com a abordagem teórica e pedagógica do material aqui proposto que é mais funcional – isto é, partindo de sua função/uso para o estudo da forma, como já discutido. Ao contrário, descrições linguísticas pautadas em teorias mais formalistas podem ser de grande ajuda para a compreensão da estrutura e funcionamento da língua, pensando que o pesquisador que encabeça a iniciativa da elaboração do material didático pode não ser membro da comunidade falante da língua-alvo.
Nesta seção, buscamos discutir algumas estratégias sobre preparação de materiais pedagógicos para populações indígenas com base em Amaral (2020) e relacioná-las à realidade social-linguística-educacional Wai Wai que guiaram nossas escolhas teórico-metodológicas até o alcance do resultado final: a Gramática Pedagógica Wai Wai.
4. Considerações finais
Neste artigo, visamos apresentar as etapas, ações e pessoas envolvidas no processo de elaboração de uma Gramática Pedagógica para o povo Wai Wai, que consistirá em um material monolíngue (na língua da comunidade) sem uso de termos técnicos para a explicação das estruturas gramaticais presentes em cada uma das vinte e duas unidades produzidas. O público-alvo a ser atendido pelo material são os alunos da Educação Básica das escolas indígenas Wai Wai presentes em diversas aldeias deste grupo indígena.
É importante mencionar que após a publicação e distribuição do material nas escolas da comunidade Wai Wai, será ofertada uma última oficina direcionada aos professores indígenas com o objetivo de orientá-los sobre o uso adequado do material com os alunos de modo a otimizar a sua utilização em sala de aula. É possível, por exemplo, não somente seguir as explicações e os exercícios já propostos em cada unidade, como também é possível que o professor indígena crie outras atividades e outros tópicos para uma aula de língua a partir do que está disposto na Gramática. Outra informação relevante sobre o uso do material é que as unidades não precisam ser seguidas pelo professor na ordem em que aparecem na Gramática. Neste tipo de material pedagógico não é requerido um conhecimento cumulativo do conteúdo das unidades. Ou seja, para o aluno compreender o conteúdo da Unidade 4, por exemplo, ele não precisa antes ter estudado as unidades 1, 2 e 3. Isto é, as estruturas gramaticais podem ser estudas de maneira livre e independente umas das outras, a critério do professor e de acordo com o que ele julgar mais adequado para uma turma em questão.
Além de caracterizarmos a Gramática Pedagógica Wai Wai, apresentamos também as dinâmicas envolvidas no processo de construção do material junto àquela comunidade indígena, mais especificamente juntos aos professores indígenas, cuja participação foi fundamental e sem a qual certamente o material não poderia ter sido feito com a mesma qualidade com que foi realizado. O engajamento da comunidade nesse tipo de ação é de vital importância para a aceitação e apropriação do material resultante do projeto. Pois, quando um pesquisador que não faz parte da comunidade (in)tenta realizar a empreitada sozinho ou com o mínimo de participação dos membros da comunidade, não só o resultado pode não ser satisfatório (pelo fato do pesquisador não ser um falante nativo), como também pode ocorrer de (por melhor que seja o resultado do material) a comunidade não se apropriar dele exatamente pelo fato de ter ficado à margem do seu processo de construção, o que anularia todos os esforços empregados para a sua concretização, já que neste cenário, ele não traria os benefícios esperados para o fortalecimento da língua ou da educação escolar indígena.
Por fim, mostramos alguns pontos que Amaral (2020) considera extremante relevantes e que devem ser considerados no momento de preparação de um material didático para comunidades indígenas, tais como: o contexto de uso do material, seus objetivos pedagógicos, o modelo de usuário/aprendiz, a teoria de aprendizagem e a abordagem pedagógica empregadas, bem como a descrição linguística prévia que subsidia o desenvolvimento do material didático. Ao apresentarmos cada um dos tópicos citados, fizemos o contraponto com a realidade (sócio)linguística dos Wai Wai, na qual nos baseamos para tomar decisões que contribuíram para a versão final do material.
Com o compartilhamento desta experiência, esperamos incentivar ou servir como modelo para iniciativas semelhantes por parte de pesquisadores indígenas e não indígenas que tenham intenção de elaborar materiais didáticos para o ensino-aprendizagem de línguas indígenas no ambiente escolar, visando o seu fortalecimento manutenção ou revitalização.
Informações Complementares
Conflito de Interesse
Os autores não têm conflito de interesse a declarar.
Declaração de Disponibilidade de Dados
O compartilhamento de dados não é aplicável a este artigo, assim como nenhum novo dato foi criado ou analisado neste estudo.
Consentimento e Ética
Esta pesquisa foi realizada seguindo os princípios do Relatório de Belmont, possui registro formal de anuência das lideranças Wai Wai para a sua realização e foi aprovada pelo Comitê de Ética da instituição responsável pela pesquisa.
Fonte de Financiamento
A pesquisa que deu origem ao presente artigo foi financiada pelo Projeto 914BRZ4019 –"Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente Contato na Região Amazônica" (Museu do Índio/FUNAI), através do Edital UNESCO No. 007/2022.
Referências
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AMARAL, Luiz. A framework for designing pedagogical materials in Indigenous language: examples from Brazil and Mexico. Revista Tellus. Campo Grande, MS, ano 20, n. 43, p. 145-166, set/dez 2020.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.
CHAGAS, Angela & CUNNINGHAM, Lúcia. O Povo Wai Wai e o Multilinguismo entre os Indígenas do Território Wayamu. Revista Moara, n. 62, ago-dez 2022 INSS: 0104-0944
GILDEA, Spike. Linguistic studies in the Cariban family. In: CAMPBELL, Lyle and GRONDONA, Veronica (eds.). The indigenous languages of South America: a comprehensive guide. The World of Linguistics; vol. 2. (p. 441-494), 2012.
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HAWKINS, W. Neill & HAWKINS, Robert E. Verb Inflections in Waiwai (Carib). International Journal of American Linguistics, Vol. 19, No. 3, (pp. 201-211). Published by: The University of Chicago Press, 1953. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1263008
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OLIVEIRA, Leonor V. O cristianismo evangélico entre os Waiwai: alteridade e transformações entre as décadas de 1950 e 1980. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional/PPGAS, 2010.
Sites consultados:
Prefeitura Municipal de Oriximiná-PA: https://www.oriximina.aexecutivo.com.br/unidadeeducacao.php?id=29
Terras Indígenas no brasil: https://terrasindigenas.org.br
Escolas.com.br: https://escolas.com.br/escola-estadual-indigena-wai-wai-14004771
Avaliação
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2025.V6.N3.ID810.R
Decisão Editorial
EDITOR: Ana Suelly Arruda Câmara Cabral
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7212-9178
FILIAÇÃO: Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
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CARTA DE DECISÃO: O artigo é uma contribuição original à linguística aplicada ao ensino de línguas indígenas enquanto línguas de comunicação, principalmente ao ensino da língua Wai wai aos próprios Wai wai, mas também aos outros povos Karíb que usam essa língua como língua de comunicação. O relato em forma de artigo é pioneiro por expor detalhes metodológicos da elaboração de uma gramática pedagógica monolíngue de uma língua indígena brasileira, facilitando a fixação de padrões gramaticais de forma direta e acessível aos público-alvo. Deve servir de inspiração a muitos outros professores e pesquisadores que lidam com o ensino-aprendizagem de línguas indígenas ainda plenamente faladas como principal língua de comunicação.
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Rodadas de Avaliação
AVALIADOR 1: Andérbio Marcio Silva Martins
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1142-9219
FILIAÇÃO: Universidade Federal da Grande Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil.
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AVALIADOR 2: Lucivaldo Silva da Costa
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1590-8989
FILIAÇÃO: Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Pará, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2025-02-12 | 09:37 PM
O relato de experiência, em forma de artigo, descreve o contexto de produção de uma proposta de gramática pedagógica da língua Wai Wai. Os autores apresentam reflexões sobre o processo de criação, com forte destaque para as práticas metodológicas adotadas. Com a publicação do artigo, o leitor terá acesso a uma experiência bem sucedida de produção de uma gramática pedagógica de uma língua indígena. A produção foi detalhadamente descrita em todos os seus passos, de modo que seja possível experimentar o processo de produção em outros contextos, com outros povos indígenas e com outras línguas. Compreende-se que o artigo submetido tem como leitores em potencial linguistas e linguistas aplicados que atuam em cursos de formação de professores indígenas , bem como professores indígenas que se envolvem com o ensino de línguas e com a produção de materiais didáticos para esse fim. A experiência compartilhada pelos autores do artigo poderá servir como parâmetro para a produção de outras gramáticas pedagógicas voltadas para povos indígenas. Destaca-se o fato de ser um material didático escrito predominantemente em língua indígena.
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AVALIADOR 2
2025-02-08 | 10:46 PM
O manuscrito traz um relato de experiências dos proponentes a respeito do processo de elaboração de uma Gramática Pedagógica da língua Wai Wai. Trata-se de uma experiência relevante e necessário no campo da Linguística Aplicada, pois ´descreve o processo de manufatura de uma Gramatica Pedagógica com base linguística e com metodologia que favorece a expressão oral e escrita dos usuários. É um manuscrito que interessa àqueles que têm desenvolvido ou que pretendem desenvolver materiais didático-pedagógicos com vistas ao ensino/aprendizagem das línguas indígenas como língua materna. Descreve, portanto, o processo de feitura de uma das poucas gramaticas pedagógicas voltadas ao ensino sobre a l´íngua a falantes nativos.