Resumo para não especialistas
O objetivo deste artigo é apresentar, pela primeira vez em português, as ideias centrais do livro Prolégomènes à une sémantique des conflits sociaux¸ publicado em 2023. Seu objetivo é ajudar a compreender como se constrói sentido dentro dos conflitos sociais. Aplicamos as ideias a um conflito francês atual: o conflito sobre o retorno de lobos ao território francês, que opõe principalmente o setor agrícola e o de ONGs ambientalistas. Salientaremos que, ao se estudar a construção do sentido nos conflitos, observa-se que o que é possível dizer está sempre mudando.
Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar, pela primeira vez em português, as ideias centrais da teoria desenvolvida no livro Prolégomènes à une sémantique des conflits sociaux¸ publicado em 2023. O intuito do livro é propor um arcabouço teórico que permita compreender e analisar a dimensão semântica dos conflitos sociais. O projeto, de natureza multidisciplinar, convoca conceitos da análise do discurso, da filosofia política, da sociologia, entre outras disciplinas. O aparato teórico, porém, dá corpo a um projeto essencialmente semântico (ainda que, para isso, ele mesmo exija ampliar os limites do que habitualmente é considerado “semântico”).
A seguir, após evocar as origens da pesquisa, a metodologia de construção do corpus e os principais elementos do conflito do qual vamos tratar neste artigo – o conflito acerca do retorno de lobos ao território francês –, apresentaremos uma leitura crítica dos antecedentes teóricos que dão base à construção conceitual que defendemos. Apresentaremos, enfim, os conceitos centrais da teoria e dois exemplos de processos dinâmicos que incidem sobre a dimensão semântica dos conflitos sociais.
1. Origens
Este projeto surgiu como uma necessidade teórica decorrente de problemas descritivos. Durante muitos anos, nossas atividades de pesquisa foram desenvolvidas dentro do quadro do que se conhece como “semântica argumentativa”. Essa etiqueta tem sido utilizada há algum tempo em referência aos conceitos desenvolvidos por Anscombre e Ducrot entre as décadas de 1970 e 1990, bem como às várias teorias que até hoje neles têm se baseado[1]. É impossível resumir aqui tantos anos de reflexão linguística, mas acreditamos que não trairemos o espírito desse paradigma teórico se dissermos que uma das ideias centrais mais persistentes nesses trabalhos é que, segundo seus autores, o sentido é sempre composto de esquemas de produção de discursos. Isso opõe a semântica argumentativa às abordagens que consideram o sentido como possuidor de um núcleo descritivo, passível de ser avaliado em termos de verdade/falsidade. De acordo com a semântica argumentativa, produzir sentido é habilitar certos discursos e inabilitar outros. Essa é a tese estritamente semântica que funda o seu arcabouço conceitual, que também é uma tese linguística. De acordo com essa tese, a dimensão semântica da língua é inteiramente feita de possibilidades de discursos. A significação léxica dos nomes, verbos, adjetivos, por exemplo, contém apenas esquemas que possibilitam a produção de certos discursos e restringem a produção de outros. Com efeito, a semântica argumentativa é uma semântica linguística: o seu objeto é a descrição da dimensão semântica do sistema linguístico.
No entanto, como pano de fundo de nossas pesquisas, sempre esteve presente a ideia segundo a qual os princípios da semântica argumentativa permitiam descrever não apenas as significações encapsuladas nas palavras de uma língua e os sentidos construídos pelos enunciados, mas também aquilo que é habitualmente chamado de “conceitos compartilhados”, “representações sociais”, “ideologias”... Tivemos, afortunadamente, a oportunidade de colocar à prova essa ideia em colaborações com pesquisadores das ciências sociais, que buscavam identificar “representações sociais” em entrevistas[2]. Embora essas experiências tenham sido extremamente interessantes, deparamos com um problema: as ferramentas teóricas que utilizávamos não se ajustavam à tarefa que lhe atribuíamos. Concebida para a descrição da língua, a semântica argumentativa não possuía conceitos para diferenciar casos nos quais certos elementos semânticos são compartilhados por membros de um grupo daqueles nos quais tais membros se opõem em relação a um mesmo elemento semântico, ou ainda daqueles em que os esquemas de sentido são mutuamente refratários em uma determinada situação. Utilizando somente os conceitos de uma semântica da língua, não era possível tampouco salientar os esquemas de sentido com maior produtividade discursiva em uma determinada situação, nem, a fortiori, as evoluções desse parâmetro no curso dessa mesma situação. Essa limitação era de se esperar: uma teoria linguística não precisa de conceitos para esses fenômenos, uma vez que não são relativos à dimensão semântica da estrutura linguística. Nesses trabalhos em colaboração com pesquisadores das ciências sociais, cada problema descritivo exigia a criação de um novo conceito ad hoc, tornando evidente a necessidade de um arcabouço teórico para abordar a dimensão semântica dos espaços sociais. Em vez de tentar estudar a totalidade do social, no entanto, procuramos isolar alguns de seus aspectos, concentrando-nos em um tipo de situação no qual os grupos sociais colocam em movimento esquemas semânticos: é por isso que decidimos nos voltar aos conflitos sociais.
2. Construção do corpus
Para iniciar a elaboração teórica, estabelecemos uma metodologia de construção do corpus. Poderíamos ter comparado um conjunto de conflitos para extrair categorias comuns a partir dos elementos mais importantes de cada um deles. Em vez disso, preferimos estudar um só conflito de maneira integral. Examinamos um conflito intenso, complexo e de grande relevância pública de modo total durante um ano: nos debruçamos, ao longo de 2014, sobre o conflito acerca do retorno de lobos ao território francês.
Essa metodologia é inspirada no livro 1889: Un état du discours social, de Marc Angenot[1]. O ponto de partida de Angenot é sua categoria de discurso social, que engloba “tudo o que se diz e que se escreve em um estado da sociedade; tudo o que se imprime, tudo o que se fala publicamente ou se representa hoje nos meios eletrônicos”[2]. A categoria de discurso social, como se pode ver, é uma categoria totalizante: não deixa nada de fora. Não se trata de um critério de seleção, mas da afirmação de uma totalidade complexa. Para se construir um corpus compatível com essa categoria, é preciso, naturalmente, dispor de uma metodologia não seletiva, o que tem duas consequências – uma qualitativa e outra quantitativa. Como consequência qualitativa, obtemos um corpus de grande heterogeneidade. Mas, longe de ser controlada pela pesquisa, essa heterogeneidade é determinada pelo campo social estudado: o corpus de Angenot inclui jornais, novelas, peças de teatro, publicidades, obras musicais, poemas, entre outros. Como consequência quantitativa, a pesquisa exige a confrontação com a totalidade do que foi produzido nos limites temporais fixados. Em seu minucioso estudo, Angenot estabelece inicialmente, por meio de catálogos, a lista de todas as publicações de seu ano de referência para, em seguida, fazer uma seleção seguindo critérios de representatividade. Esses critérios o levam, por exemplo, a escolher 487 títulos de imprensa entre os cerca de 5.500 publicados durante 1889, concentrando-se em jornais políticos, imprensa ilustrada, imprensa satírica.... Assim, a metodologia utilizada por Angenot para construir seu corpus é qualitativamente totalizante (tenta abranger todos os gêneros possíveis), mas quantitativamente parcial (não analisa todas as publicações de cada gênero). No nosso caso, em contraste, o que procuramos aplicar foi uma metodologia nem qualitativamente, nem quantitativamente seletiva. Nosso corpus engloba, assim, todos os textos publicados na internet durante o ano de 2014 que se relacionam com o conflito do retorno de lobos ao território francês. Integram esse conjunto, cerca de 500 artigos da imprensa, textos publicados em websites de ONGs e sindicatos, e os mais de 5.000 comentários deixados por internautas nesses websites. Incorporamos igualmente as intervenções no Senado Nacional e os textos oficiais produzidos pelo Estado relativas ao conflito do lobo, e também todas as contribuições ao debate público organizado pelo Ministério da Ecologia (mais de 2.000).
A opção pela internet (o que determina certamente uma seletividade, deixando de lado a imprensa de papel, a televisão e o rádio, por exemplo) visou captar a vitalidade do conflito, isto é, as micro e as macroevoluções semânticas, no seu decorrer permanente: a internet é o suporte privilegiado para o surgimento e o arquivamento das intervenções que procuram agir dentro dos conflitos sociais contemporâneos.
A partir da leitura crítica de certas categorias conceituais existentes na literatura especializada, desenvolvemos novas ferramentas de análise, além de uma visão global do funcionamento semântico dos conflitos sociais. Mas, antes de avançar, é necessário apresentar brevemente o conflito que sustenta e ilustra a aplicabilidade da teoria.
3. O conflito do retorno de lobos à França
Quando falamos de conflitos sociais, tentamos isolar as situações políticas conflitivas que acontecem no espaço público que são relativamente autônomas (ou seja, identificáveis dentro do espaço sociopolítico global). Alguns exemplos de conflitos sociais, no sentido que nós damos a essa expressão, são: os protestos que tiveram lugar no Chile em 2019 após o governo aumentar a tarifa do metrô da cidade de Santiago, e que deram origem a um dos maiores movimentos sociais chilenos dos últimos 50 anos[1]; a disputa a respeito do isolamento social durante a pandemia do coronavírus no Brasil[2]; o conflito acerca do retorno de lobos no território francês, do qual trataremos.
O lobo sempre foi um problema na França. A sua presença maciça no território motivou, desde a época de Carlos Magno (virada do século VIII para o IX), a implementação de uma política de extermínio. Nos anos 1930, essa campanha de matança chegou a seu final: o lobo havia sido eliminado de todo o território francês. Entretanto, a espécie não teve o mesmo destino em países vizinhos. No princípio dos anos 1990, teve início um movimento de entrada de lobos na França, por meio dos Alpes, a partir do norte da Itália. Ao atravessarem os Alpes, os lobos chegam a um terreno favorável para sua instalação: um enorme parque natural, no qual abundam espécies animais, como veados, javalis e, durante o verão, grande quantidade de rebanhos de ovelhas[3]. Esses rebanhos constituem alimento fácil para eles, já que o método dos criadores de ovelhas dessa região se baseia na pastagem em liberdade na alta montanha, em plena natureza, praticamente sem vigilância. A reaparição de lobos, então, se tornou imediatamente um problema grave para os criadores, pois seus ataques a ovelhas passaram a ser cada vez mais frequentes (chegando a 9.033 o número de ovinos mortos por lobos em 2014). Do ponto de vista de muitos criadores e pastores, essa situação se agravou devido à proibição de matar lobos, decorrente do status de “espécie rigorosamente protegida” na Europa, conforme previsto na Diretiva Habitats, que possui valor de convenção internacional. Com isso, os criadores e pastores já não podem recorrer à velha prática de simplesmente abater os lobos. Caçar um único lobo em 2014 podia resultar em três anos de prisão ou 150.000 euros de multa. É assim que o conflito começa. O setor agrícola se mobiliza para pedir ao Estado que permita o abate de lobos e que atue como mediador para que a Comunidade Europeia reduza o nível de proteção da espécie. As ações vão desde manifestações, como a ocupação da Torre Eiffel por criadores de ovelhas do sul da França com seus rebanhos, até ações violentas, como o sequestro do diretor de um parque natural por parte de criadores. Além dos criadores, também participam do conflito ONGs ambientalistas, que promovem políticas de proteção das espécies, personalidades políticas, que participam com suas opiniões e propostas, e a sociedade civil, globalmente favorável à defesa dos lobos. Entretanto, a população de lobos na França continua a crescer: em 2014, havia cerca de 500 deles no país.
4. Os antecedentes da análise do discurso
A elaboração teórica que propomos têm duas fontes como seus principais antecedentes: a análise do discurso e a semântica. Vamos abordar primeiro os aportes da análise do discurso. Os trabalhos fundantes da análise do discurso na sua vertente francesa estabelecem, como um dos seus maiores objetivos, a descrição de configurações sociais de sentidos e discursos, realizada principalmente por meio do conceito de formação discursiva. Na verdade, deveríamos dizer conceitos de formação discursiva, no plural, pois há várias versões, cada uma com particularidades interessantes de se resgatar. No entanto, todas essas versões têm algo em comum: elas todas permitem conceber que há, em cada situação social, configurações de possibilidades discursivas abertas. Enunciar é atualizar essas possibilidades discursivas socialmente disponíveis. Essa ideia tem origem sobretudo na Arqueologia do saber, de Foucault[1]. Afirmar que essas configurações estão socialmente disponíveis significa dizer que elas não existem por estar na mente dos indivíduos, mas por estar em uma conjuntura social específica. Pêcheux (1975), em sua abordagem acerca das formações discursivas, acrescenta duas ideias. A primeira é que as formações discursivas são, para ele, de natureza estritamente semântica: é nelas que se formam os esquemas de sentido que podem ser enunciados, como, por exemplo, as relações de causa e efeito que são enunciáveis em um determinado contexto social. Desse modo, diferentemente de Foucault, que coloca em um mesmo plano as regularidades enunciáveis (que podemos considerar, do ponto de vista de Pêcheux, como semânticas) e os acontecimentos discursivos (que são, para falar como Ducrot (1980), o acontecimento histórico da aparição do enunciado), Pêcheux, por meio de sua operação conceitual, salienta a importância do semântico. A outra ideia de Pêcheux, extremamente importante para nosso projeto, é que as formações discursivas são intrinsecamente conflitivas. Não é possível ter uma configuração social de sentido que não seja atravessada pela conflitualidade inerente à sociedade.
Maingueneau (1983) insere a problemática das formações discursivas em um projeto diferente: a reflexão teórica acerca das propriedades semânticas do que o autor chama de polêmicas – no caso concreto estudado por ele, a controvérsia entre duas tendências teológicas, o jansenismo e o humanismo devoto, cujo apogeu ocorreu no século XVII. As características das polêmicas teológicas são, sem dúvida, diferentes daquelas que caracterizam os conflitos sociais contemporâneos. Podemos afirmar, no entanto, que o estudo de Maingueneau é para nós, em certo sentido, fundador: ele busca estabelecer os princípios do funcionamento semântico de conjunturas públicas conflitivas. É possível afirmar o mesmo de nosso projeto. Além disso, Maingueneau distingue claramente um plano semântico, no qual se acham os elementos de sentido que são colocados em discurso, e um plano discursivo, que ele nomeia de superfície discursiva da polêmica, na qual se encontram as produções linguísticas emitidas pelos protagonistas da polêmica estudada.
Apesar das diferenças, as versões de formação discursiva apresentadas até aqui possuem todas uma mesma dificuldade: nenhuma delas introduz a possibilidade de mudança. As formações discursivas, tal como são apresentadas pelos autores citados, não contêm transformações internas. Mais precisamente, deveríamos afirmar que, segundo esses autores, as formações discursivas, na realidade, mudam, mas de uma única maneira: a mudança total, que é a passagem de uma formação a outra. O problema é que, quando observamos os conflitos sociais, o fenômeno mais frequentemente constatado é, justamente, a constante transformação semântica.
Vejamos um exemplo. Nele, a mudança semântica em questão tem a ver com a narrativa a respeito da volta de lobos à França. Nessa transformação podemos constatar duas fases. Durante a primeira delas, há apenas uma versão para explicar a presença novamente de lobos no território francês. Segundo ela, o lobo entrou na França a partir da Itália, atravessando os Alpes. Essa sequência tem uma produtividade altíssima: a vemos na imprensa, em websites de ONGs, em textos científicos... Eis aqui quatro trechos discursivos que a colocam em funcionamento:
(1A) Em 5 de novembro de 1992, dois lobos foram vistos no Parque Nacional Mercantour (na fronteira com a Itália), marcando oficialmente o retorno natural de lobos à França após setenta anos de extinção. Desde então, a população de canídeos tem crescido: no final do inverno de 2012-2013, o número de animais foi estimado em cerca de 250, com uma taxa de crescimento anual de cerca de 20%[1].
(1B) Erradicado do território francês em 1937, o lobo, uma espécie protegida por várias convenções internacionais, retornou aos Alpes franceses vindo da Itália em 1992. Sua presença esporádica em outras cadeias montanhosas tende a se tornar permanente, como tem sido oficialmente o caso desde 2012 nos Vosges, entre a Alsácia e a Lorena, onde uma matilha de pelo menos quatro indivíduos foi identificada na última primavera[2].
(1C) Ele [o lobo] permaneceu presente no norte da Itália e, pouco a pouco, retornou da península para a França. Localizado no Parque Mercantour em 1992, desde então, ele tem se espalhado. Acredita-se que haja cerca de cem deles em aproximadamente vinte matilhas no leste da França[3].
(1D) Os lobos retornaram naturalmente da Itália para a França no início da década de 1990 e, desde então, se estabeleceram nos Alpes, continuando a colonizar novas áreas, incluindo o leste dos Pirineus, o Maciço Central, os Vosges, a Alta Marne e, mais recentemente, o Aube[4].
Mais tarde, no entanto, notamos que já não há mais apenas uma sequência narrativa sobre a origem da atual presença de lobos na França, mas uma concorrência entre duas origens mutuamente excludentes. Isso pode ser visto claramente nos seguintes trechos:
(2A) Reintrodução ou introdução, essa não é a questão: o lobo NÃO foi introduzido (ou reintroduzido) na França. Se você tem provas do contrário, mostre-as! Em vez de espalhar boatos! O lobo chegou naturalmente aos Pirineus. Ele veio da Itália, passou pelos Alpes no início dos anos 90, depois passou pelo Maciço Central, onde sua presença é comprovada. Ele chegou ao Aude há pouco tempo e agora está nos Pirineus. Como você pode ver, é muito fácil refazer seus passos. O homem não interveio em nada.
(2B) O lobo não é um predador perigoso que foi reintroduzido em um número tão grande a ponto de oprimir impiedosamente pastores e rebanhos. Porque, e isso é um fato incontestável, o lobo não foi de forma alguma “reintroduzido”; mas, ao contrário, voltou espontaneamente da Itália pelos Alpes, e essa incursão foi mais do que limitada (a população total na França em 2013 era de cerca de 250 indivíduos).
· Os conflitos sociais têm ao menos duas dimensões: uma, em que se encontram os discursos que surgem no contexto do conflito, que chamamos, à maneira de Maingueneau, de superfície discursiva do conflito; outra, em que existem os elementos semânticos que configuram as possibilidades de dizer que estão disponíveis dentro do conflito, que nomeamos de espaço semântico do conflito (apesar das similaridades com as formações discursivas, não chamamos essa dimensão de formação porque a concebemos mais como uma dimensão na qual os discursos podem intervir do que simplesmente uma configuração; tampouco a qualificamos de discursiva para salientar tanto sua natureza semântica como sua especificidade com respeito à superfície discursiva).
· Os discursos que surgem na superfície discursiva de um conflito agem sobre sua dimensão semântica, eventualmente modificando-a (acrescentamos aqui esse eventualmente porque, como veremos mais adiante, nem todas as intervenções discursivas produzem os efeitos para os quais elas se orientam).
· O espaço semântico de um conflito social é de natureza antagônica e instável.
5. O antecedente da semântica argumentativa
Entre os antecedentes teóricos mais importantes deste projeto, como dissemos anteriormente, está o paradigma da semântica argumentativa. São várias as razões que fazem desse tipo de teoria uma opção pertinente para o estudo dos conflitos de um ponto de vista semântico.
A primeira razão é que a versão mais recente desse paradigma, a Teoria dos Blocos Semânticos (TBS), de Carel (2011), considera que a unidade semântica mínima possui sempre uma potencialidade conflitiva. Todo esquema semântico X é uma das realizações possíveis de um bloco semântico mais amplo que contém também outros esquemas que permitem se opor a X de maneiras diferentes. Não existe nada que seja semântico e que escape a esse princípio de conflitualidade latente. Por exemplo, na perspectiva de Carel, deve-se considerar que o esquema semântico realizado por um encadeamento discursivo como o lobo está em perigo de extinção, portanto a espécie deve ser protegida realiza, de uma maneira particular, o mesmo bloco semântico que o encadeamento o lobo não está em perigo de extinção, portanto não é necessário proteger a espécie. Todo esquema semântico é um ponto de vista particular dentro de um tipo de microideologia que contém a possibilidade de sua própria refutação.
Uma outra razão importante para nós é que a semântica argumentativa possui um aparato sofisticado para a descrição, por exemplo, dos pontos de vista veiculados nos enunciados, das posições naturalizadas, dos posicionamentos ideológicos implícitos nos discursos[1].
Um terceiro motivo é que, para a semântica argumentativa, todo elemento de sentido é um esquema semântico a partir do qual é possível produzir certos discursos. Essa ideia permite compreender os discursos de um conflito social como manifestações de um trabalho feito sobre os discursos que estão disponíveis no conflito.
Essas são apenas algumas das razões que fazem da semântica argumentativa um paradigma enriquecedor para o estudo semântico dos conflitos sociais.
Passamos agora a detalhar um pouco mais o que é um elemento de sentido no quadro da semântica argumentativa. Dissemos que o que pode ser significado é sempre um esquema semântico que equivale à possibilidade de um certo tipo de discurso. Esses discursos podem ser de duas classes. Uma primeira classe é formada por discursos que apresentam o que percebemos como o encadeamento de uma causa a um efeito, que podem explicitar sua natureza semântica por meio de conectores consecutivos, condicionais ou causais (como portanto, se... então, porque...) ou elementos lexicais ou expressões que concretizam esse tipo de relação (favorecer, tornar possível, engendrar...). Um esquema desse tipo é o seguinte:
(1E) [o lobo estava na Itália → o lobo está agora na França]
O que a seta → procura sistematizar não é uma relação lógica. A seta → indica somente que a partir desse esquema se pode produzir um discurso como a presença de lobos na Itália tornou possível a volta de lobos para a França.
A segunda classe de discursos que pode ser habilitada por um esquema semântico é a dos discursos opositivos, que se concretizam habitualmente por meio de conectores como porém, no entanto, embora... e também por meio de elementos léxicos ou expressões (não impedir, não favorecer, não tornar possível). O seguinte esquema é desse tipo:
(1F) [o lobo havia sido erradicado da França ⇸ o lobo voltou para a França]
A seta barrada ⇸ indica que o esquema habilita, entre outros, um discurso como o lobo tinha sido erradicado do território francês nos anos 1930, porém, no começo dos anos 1990, o lobo voltou para a França.
Consideramos que esses esquemas são os elementos semânticos básicos que definem os discursos possíveis em qualquer situação. Há, porém, como anunciamos antes, um obstáculo para a incorporação direta dessas ideias a uma descrição semântica dos conflitos sociais. Para a semântica argumentativa, e mais particularmente para a Teoria dos Blocos Semânticos, os esquemas semânticos existem sob a forma de significações lexicais dentro do sistema da língua. Por exemplo, poderíamos afirmar, nesse quadro, que a significação léxica da palavra proteger contém, entre outros, um esquema [x está em perigo → proteger x]. Quando o locutor produz um enunciado com a palavra proteger, ele pode explorar esse esquema e dizer, por exemplo, o lobo está em perigo de extinção, portanto há que protegê-lo.
O problema é que, para desenvolver uma teoria semântica dos conflitos sociais, precisamos de unidades de análise que tenham outro modo de existência, diferente do dos elementos linguísticos. Essas unidades devem ser capazes de ser modificadas, entrar em relações antagônicas, existir em uma configuração instável (enquanto, ao contrário, se supõe que a língua é uma configuração com certa estabilidade e homogeneidade). Ademais, as entidades semânticas ativas em um conflito devem poder ser relacionadas com elementos não linguísticos, como práticas sociais, ações concretas, uma vez que o que está em jogo em um conflito nunca é somente uma questão de significações ou de discursos, mas a possibilidade de agir de uma certa maneira no mundo, embora essa possibilidade seja trabalhada pelos discursos que operam sobre o espaço semântico do conflito.
6. O conceito de programa
É por essas razões que, junto a Z. Camus, propomos o conceito de programa para caracterizar as unidades semânticas próprias aos conflitos sociais[1]. Um programa é a unidade elementar do espaço semântico de um conflito social. Mais precisamente, um programa é uma potência de agir discursivamente ou não discursivamente. Tal potência de agir é situada e precária. Precisemos essas propriedades.
Dizemos que um programa é uma potência de agir discursivamente porque todo programa é um esquema semântico a partir do qual é possível produzir ações discursivas. Falamos de potência de agir em referência à filosofia de B. de Spinoza, responsável por desenvolver uma ontologia na qual todas as entidades existentes são definidas como capacidades variáveis para produzir ações. No que tange às unidades semânticas, isso implica que toda unidade de sentido inserida em um conflito social está orientada para sua realização prática, em ações efetivas, embora a possibilidade de sua realização concreta esteja sujeita aos efeitos dos discursos que tentam enfraquecê-la ou reforçá-la. Os programas contêm um esquema semântico (de um dos dois tipos reconhecidos pela semântica argumentativa, que simbolizamos por → e ⇸) a partir do qual se pode produzir ações discursivas, isto é, ações cuja realização material passa essencialmente pela produção de materialidades linguísticas.
Nesse sentido, se pode afirmar que, a partir do esquema semântico (1E) [o lobo estava na Itália → o lobo está agora na França], foi produzido um grande número de ações discursivas, entre as quais as dos trechos (1A) a (1D), que mobilizam, todos eles, o programa segundo o qual a presença atual de lobos na França se deve à sua presença prévia na Itália. Todas essas ações discursivas foram produzidas parcialmente a partir de um programa que contém tal esquema semântico.
Um programa é também uma potência de agir não discursivamente. Isso quer dizer que todos os elementos semânticos que existem em um conflito estão relacionados de certo modo a ações e práticas não discursivas. Retomando alguns elementos da filosofia de Deleuze e Guattari (1981), dizemos que os programas são agenciados, por meio de discursos, às práticas e às ações não linguísticas que estão em jogo no conflito ao qual ele pertence. Por exemplo, o programa que contém o esquema semântico (1E) [o lobo estava na Itália → o lobo está agora na França] tem sido agenciado, por meio de discursos diferentes, à contagem dos lobos, às medidas de proteção dos rebanhos propostas aos criadores pelo Estado, às indenizações que o Estado fornece aos criadores cujas ovelhas são vítimas dos ataques de lobos, às pautas de proteção da espécie que apresentam as ONGs...
Um programa é ainda uma potência de agir situada porque sua existência ocorre sempre no interior do espaço semântico de um conflito social específico. Ou seja, não é possível observar um programa fora de um determinado conflito.
Por fim, essa potência de agir é precária, uma vez que está submetida às mudanças produzidas pelos discursos que intervêm no espaço semântico do conflito. Dependendo dessas mudanças, sua capacidade de produzir discursos e ações não discursivas pode passar de extremamente alta a quase nula ou vice-versa.
Por que chamamos de programa essas unidades semânticas? Porque, da mesma maneira que os programas políticos ou educativos, as unidades do espaço semântico dos conflitos sociais são virtualidades que estão orientadas para a ação. E também, do mesmo modo que os programas de informática, essas entidades semânticas podem ser colocadas em funcionamento para produzir ações (discursivas ou não). A unidade elementar do espaço semântico dos conflitos sociais, mesmo que seja explorada para produzir uma imagem do passado (como os programas sobre a origem da presença atual de lobos na França) está sempre orientada para a sua realização no domínio discursivo e no âmbito das ações não discursivas.
7. A desestabilização temporária da tese do retorno natural de lobos à França
Podemos agora aplicar esses conceitos para a descrição de transformações semânticas. Se voltarmos ao caso da origem da atual presença de lobos no território francês, podemos estabelecer, como ponto de partida, a existência de duas fases nessa evolução. Na primeira, estamos perante uma situação homogênea, na qual a volta de lobos é contada de uma única maneira, colocando em discurso um “acontecimento”, um “fato”: o lobo voltou à França a partir da Itália, atravessando os Alpes. Em outros termos, nessa fase, os discursos colocam em funcionamento o programa (1E) [o lobo estava na Itália → o lobo está agora na França] junto ao programa (1F) [o lobo havia sido erradicado da França ⇸ o lobo voltou para a França], sem considerar outras diferentes possibilidades. Esses dois programas funcionam conjuntamente como uma unidade complexa que permite produzir, nesse conflito, os discursos que manifestam o retorno natural de lobos à França. Esse programa complexo é colocado em discurso pelos trechos (1A) a (1D), entre muitos outros de nosso corpus, como se fosse um “fato”, uma evidência, como algo objetivamente verdadeiro.
Quando, durante um determinado período, um programa é colocado em discurso apenas de maneira factual, como o programa complexo da volta natural de lobos, dizemos que esse programa possui, durante essa fase, um alto grau de estabilização. O conceito de (des)estabilização foi introduzido por Z. Camus no contexto de suas pesquisas sobre as propriedades semânticas das assembleias políticas cidadãs[1], e foi posteriormente adaptado ao estudo dos conflitos sociais[2]. A ideia geral é que, dentro de um conflito social, os discursos produzidos a partir de um programa podem ser mais ou menos factuais ou mais ou menos polêmicos. Quanto maior é a capacidade de um programa para produzir discursos factuais, mais alto é seu grau de estabilização. Inversamente, quanto mais polêmicos são os discursos produzidos a partir de um programa, mais baixo é seu grau de estabilização (mais ele está desestabilizado). Os discursos que participam de um conflito social estão permanentemente mudando o grau de estabilização dos programas existentes no espaço semântico desse conflito. Além disso, é possível dizer que a luta discursiva, parte integrante de um conflito social, é em grande medida uma luta pela estabilização e a desestabilização de programas. É por isso que o grau de estabilização dos programas está sujeito a mudanças ao longo do conflito.
A partir dessas ideias é possível dizer que, durante essa primeira fase da transformação semântica que tentamos descrever, havia uma tendência muito forte à estabilização do programa (complexo) da volta natural de lobos para a França. Há, em seguida, uma fase na qual se observa uma tendência à desestabilização desse mesmo programa. Isso pode ser observado nos trechos discursivos (2A) e (2B), que apresentamos novamente abaixo:
(2A) Reintrodução ou introdução, essa não é a questão: o lobo NÃO foi introduzido (ou reintroduzido) na França. Se você tem provas do contrário, mostre-as! Em vez de espalhar boatos! O lobo chegou naturalmente aos Pirineus. Ele veio da Itália, passou pelos Alpes no início dos anos 90, depois passou pelo Maciço Central, onde sua presença é comprovada. Ele chegou ao Aude há pouco tempo e agora está nos Pirineus. Como você pode ver, é muito fácil refazer seus passos. O homem não interveio em nada.
(2B) O lobo não é um predador perigoso que foi reintroduzido em um número tão grande a ponto de oprimir impiedosamente pastores e rebanhos. Porque, e isso é um fato incontestável, o lobo não foi de forma alguma “reintroduzido”; mas, ao contrário, voltou espontaneamente da Itália pelos Alpes, e essa incursão foi mais do que limitada (a população total na França em 2013 era de cerca de 250 indivíduos).
Esses trechos mostram uma relação de concorrência entre o programa do retorno natural (programa complexo constituído por 1E e 1F) e o programa segundo o qual o lobo está atualmente na França porque foi reintroduzido artificialmente, que contém o esquema (2C):
(2C) [o lobo havia sido erradicado da França ⇸ o lobo foi reintroduzido]
Nessa segunda fase, há a presença simultânea de dois programas que se apresentam como incompatíveis, como contraditórios. Esse tipo de relação entre programas corresponde ao que chamamos de tensão. Quando se tem dois programas em tensão, estabilizar um é, simultaneamente, desestabilizar o outro. É o que acontece agora: diferentemente do período inicial, no qual havia uma tendência à alta estabilização do programa do retorno natural, nesse novo período temos uma tensão, uma vez que certos discursos tentam desestabilizá-lo, ao manifestarem o programa da reintrodução artificial. Essa é a transformação semântica que é preciso explicar.
Nossa hipótese é que essa evolução do espaço semântico do conflito do lobo se deve a uma intervenção discursiva. Essa intervenção foi produzida por um importante político, Christian Estrosi, prefeito da cidade de Nice (capital de um dos departamentos franceses com maior presença de lobos, o departamento dos Alpes Marítimos[1]) e presidente da comissão legislativa sobre a questão do lobo no Senado Nacional. Ele profere o seu discurso em um contexto relativamente modesto: em uma reunião da associação dos caçadores de seu departamento. Suas palavras, porém, produziram um alto impacto. O trecho central é o seguinte:
(2D) Em 1992, o lobo foi reintroduzido artificialmente por funcionários de Estado e guardas florestais do parque Mercantour [grande parque natural francês na zona fronteiriça com a Itália][1].
Essa intervenção, que surge em um contexto de tendência à alta estabilização do programa do retorno natural de lobos, consegue levar a cabo a capacidade desestabilizadora que carrega: o programa do retorno natural é efetivamente desestabilizado. Isso é o que se observa na segunda fase da transformação sobre a qual nos debruçamos: pouco tempo depois, quando o programa do retorno natural é colocado em discurso, já não é possível fazer isso como se não existissem alternativas a ele, como se o retorno natural de lobos à França fosse desprovido de polemicidade. Ele deve, ao menos, estar acompanhado do rechaço ao programa da reintrodução artificial, como observamos em (2A) e (2B).
É importante salientar que o impacto das intervenções discursivas não é garantido de antemão. O discurso de C. Estrosi possui uma capacidade particularmente alta de desestabilizar o programa do retorno natural de lobos à França. Essa capacidade, confirmada e ampliada pelas inúmeras reproduções desse discurso na imprensa nacional e local, em websites favoráveis ou desfavoráveis ao lobo e em fóruns de discussão on-line (que operam como verdadeiras plataformas de propagação semântica), se beneficia da notoriedade política e midiática de C. Estrosi, além de ser favorecida por um ambiente propício ao descrédito dos discursos oficiais a respeito dos lobos (que gera o descontentamento dos criadores de ovelhas em relação às políticas públicas em vigor para a questão).
Temos aqui, então, como resultado de um conjunto de fatores do qual tira partido uma intervenção pontual, um acontecimento semântico: a transformação do espaço semântico do conflito. Essa transformação, porém, teve uma duração relativamente curta. Dois anos mais tarde, C. Estrosi foi condenado pela Justiça, por difamação de funcionários públicos, em razão de ter dito publicamente o trecho (2D). A condenação contribuiu para a desestabilização do programa da reintrodução artificial. A partir de 2016, discursos produzidos a partir desse programa são raros. Ou seja, a tendência novamente mudou, voltando à situação inicial. E, ainda hoje, perdura a tendência à altíssima estabilização do programa do retorno natural de lobos.
8. Percurso de um programa bem-sucedido: da instalação ao agenciamento a novas práticas
O segundo caso que permite mostrar alguns dos princípios de funcionamento do espaço semântico de um conflito social se relaciona a programa segundo o qual os ataques de lobos produzem sofrimento aos criadores de ovelhas e aos pastores.
(3A) [ataque de lobos → sofrimento do criador/pastor]
A primeira fase da transformação desse programa, tem a ver com sua produtividade. A produtividade de um programa é a quantidade relativa de discursos produzidos a partir dele durante um determinado período. Observar a produtividade de um programa não apresenta grandes dificuldades metodológicas: chegamos a ela a partir da comparação da quantidade de discursos produzidos por tal programa ante a quantidade de discursos produzidos por ao menos um outro programa. É importante salientar que a produtividade dos programas muda frequentemente: em certos períodos, um programa pode ser altamente produtivo, mas, em outros, pode ter uma produtividade quase nula.
Antes do ano de 2014, esse programa possuía uma produtividade praticamente nula. Apenas dois discursos tinham sido produzidos a partir dele:
(3B) O verão 2012 foi particularmente difícil para esse departamento [Alpes Marítimos], que totaliza um terço das predações [ataques de lobos a ovelhas] constatadas em todo o território. Em 17 de agosto, com 406 ataques, quase se atingiu o total de ataques de todo o ano de 2011. As tensões se fizeram sentir. Em 8 de agosto, em Châteauneuf-d’Entraunes, um criador, exausto após sofrer seu décimo quinto ataque, entrou em um violento embate com um dos guardas enviados ao local para constatar os danos. O parque apresentou uma queixa por agressões e lesões. [...] “A gente tinha alertado que isso ia acabar mal. A gente pode falar de sofrimento. O trabalho dos agricultores é desvalorizado, suas vidas se tornaram impossíveis, os casais estão se separando”, protesta Michel Dessus, presidente da Câmara de Agricultura[1].
(3C) Recebo muitíssimos relatos sobre ataques de lobos e de ursos em toda a França, que colocam pastores bem-intencionados em situações fisicamente, emocionalmente e financeiramente INSUPORTÁVEIS.
A segunda fase é determinada por uma intervenção altamente estabilizadora: o Plano Nacional do Lobo 2013-2017, lançado em abril de 2013. O plano é o documento produzido pelo Estado a cada quatro anos para definir a política geral da gestão dos lobos, coordenando o conjunto das atividades relativas à espécie. Após a contextualização geral da situação, com base em dados (se constata a evolução da povoação de lobos no território francês, dos ataques e outros dados estatísticos), é definida a linha política a ser adotada, seguida da disposição de medidas concretas: ações dissuasivas de proteção para o rebanho, o tipo de uso de armas permitido para a defesa do rebanho em caso de ataque, possibilidades de abate de lobos, indenizações para os criadores... É um documento que implica muitas (e complexas) negociações prévias com os setores envolvidos na questão, sobretudo criadores e ONGs ambientalistas, e que gera grande expectativa, uma vez que as disposições nele indicadas serão aplicadas durante quatro anos.
Dentro do Plano Nacional Lobo 2013-2017, em uma seção cujo título é (3D), se pode ler o trecho (3E):
(3D) Estudo sobre o impacto socioeconômico da predação de lobos
(3E) [...] os momentos de predação têm fortes consequências psicológicas e emocionais para as pessoas, o que pode resultar em sofrimento significativo.
Esse trecho mobiliza o programa (3A) [ataque de lobos → sofrimento do criador/pastor], mas, diferentemente dos discursos (3B) e (3C), há, dessa vez, uma capacidade estabilizadora extrema. A produtividade do programa, porém, não deslancha: esse discurso permanece um caso isolado. Temos de esperar mais de um ano para ver o programa mobilizado novamente em uma intervenção da ministra da Ecologia, Ségolène Royal, ocorrida em junho de 2014:
(3F) "Embora, pela primeira vez", os danos "não tenham aumentado entre 2012 e 2013, mais de 6.000 animais de criação foram vítimas de lobos em 2013. A angústia dos criadores e de suas famílias deve ser levada em consideração mais fortemente", declarou a ministra em um comunicado à imprensa, após receber os prefeitos dos departamentos mais afetados na sexta-feira.
Logo em seguida, há um aumento súbito da produtividade do programa (3A) [ataque de lobos → sofrimento do criador]. Isso é favorecido por uma situação particular: entre maio e junho 2014, o Ministério da Ecologia abre uma “consulta pública” para recolher a opinião das pessoas e instituições interessadas, sobre uma medida delicada. A pasta desejava ampliar a habilitação para caçar lobos, até então reservada ao corpo dos caçadores funcionários públicos, para incluir também caçadores particulares. Com efeito, quando o Estado francês tem a intenção de adotar uma medida potencialmente polêmica, pode ser aberta uma consulta oficial, que às vezes ocorre por meio de discussões organizadas com especialistas, seguidas da coleta da opinião dos cidadãos, ou, outras vezes, simplesmente por meio de um espaço na web no qual as pessoas e organizações podem expressar seus pontos de vista. No caso em questão, que segue o segundo modelo, foram recebidas mais de 2.500 apreciações, disponibilizadas para a leitura do público. Entre elas, se encontram diversas intervenções que colocam em produção o programa (3A). Eis alguns trechos de comentários deixados na consulta:
(3G) Quem mede o dano moral dos criadores que vivem com medo e com um estresse permanente. Estão destruindo suas vidas!!! [...] SIM AO PROJETO[1].
(3H) O aumento da pressão de predação, que se tornou mais generalizada e severa nos últimos anos no departamento dos Alpes Marítimos, apesar da implementação de importantes medidas de proteção, provoca um transtorno considerável nas profissões de agricultor e de pastor: [...] Um estado permanente de estresse para os criadores, que tem repercussões na célula familiar[2].
(3I) O aumento das horas de trabalho, a repetição imprevisível dos ataques, apesar dos esforços para implementar medidas de proteção, leva a uma fadiga física e psicológica cada vez maior. Em épocas de intensa predação, as condições de trabalho se tornam inaceitáveis para empregadores e empregados, e o estresse e a angústia que resultam disso têm um impacto significativo nas relações coletivas no trabalho[3].
(3J) Os agricultores convivem diariamente com o medo de ataques e sofrem um trauma real[1].
Constatamos assim uma produtividade em alta em relação à fase precedente. Imediatamente depois do fim da consulta, a ministra explora essa nova tendência semântica para dar mais um passo: ela agencia esse programa à prática efetiva de caça a lobos por caçadores privados. A pasta decide tomar a medida submetida à consulta (medida que, aliás, na consulta se mostra altamente impopular), se valendo do sofrimento humano provocado pelos ataques de lobos como uma das ancoragens semânticas da prática que sua decisão torna disponível. Isso pode ser visto no trecho discursivo seguinte:
(3K) "Sei que as associações estão muito insatisfeitas", disse a ministra da Ecologia, mas "diante de criadores exaustos, em grande sofrimento, minha prioridade é a proteção dos pastores, a ocupação das montanhas pelos rebanhos"[1].
É importante salientar que o programa (3A), embora faça seu percurso em um contexto altamente conflitivo, não recebe nunca ataques discursivos diretos: não achamos em nosso corpus discursos que tentem desestabilizar diretamente esse programa.
Para resumir, o percurso do programa segundo o qual os ataques de lobo são fonte de sofrimento de criadores e pastores começa com uma produtividade baixa. Depois de, ao menos, duas intervenções oficiais de forte impacto, o programa passa por um momento de alta produtividade, situação da qual se vale o poder público para agenciar esse programa a novas possibilidades de agir no mundo. À guisa de epílogo, digamos que atualmente esse programa tem uma grande produtividade nesse conflito e um grau de estabilização também muito alta, sendo colocado em discurso como um fato, tanto pelos grupos favoráveis como desfavoráveis à caça aos lobos.
9. Conclusão
O que expusemos até aqui é apenas uma mostra do acercamento teórico que fundamentamos em Lescano (2023a), enriquecido e aplicado a conflitos de diferentes países em Coletivo Programma (2022), e cujo intuito é a descrição da dimensão semântica dos conflitos sociais. A tese principal desse marco é que, de um ponto de vista semântico, um conflito social é uma luta por (des)estabilizar potências de agir. Isso torna necessário contar com ferramentas que permitam analisar as permanentes transformações semânticas que acontecem dentro de um conflito social. Mas, além das ferramentas descritivas (os conceitos de espaço semântico, de programa, de (des)estabilização, de produtividade, de tensão etc.), o projeto implica uma ampliação do domínio de estudo do que se chama habitualmente de semântica: trata-se de apreender uma das dimensões essenciais do espaço sociopolítico, aquela na qual se constituem, discursivamente, as instáveis possibilidades de agir no mundo, que formam nossos modos de vida.
Agradecimentos
Agradeço a Álvaro Magalhães Pereira da Silva pela leitura atenta e cuidadosa do meu texto original, pelas sugestões e os comentários valiosos.
Informações Complementares
Conflito de Interesse
O autor não tem conflitos de interesse a declarar.
Declaração de Disponibilidade de Dados
Os dados analisados têm sido transcritos em rodapé e traduzidos no texto.
Declaração de Uso de IA
O autor declara que nenhuma ferramenta de IA foi utilizada na criação deste manuscrito nem em qualquer aspecto dos trabalhos realizados cujo resultado está reportado no manuscrito.
Referências
ANGENOT, Marc. 1889 : Un état du discours social. Longueuil, Le Préambule, 1989.
ANSCOMBRE, Jean-Claude e DUCROT, Oswald. L’argumentation dans la langue. Bruxelles-Liège-Paris: Mardaga, 1983.
BEHE, Louise; CAREL, Marion; DENUC, Corentin; MACHADO, Julio Cesar (orgs.). Curso de semântica argumentativa. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021.
CAMUS, Zoé. Pour une description sémantique des assemblées citoyennes politiques: Marinaleda, NPA, Nuit Debout. Tese (Doutorado em Linguística) – École Des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2020.
CAMUS, Zoé. "De lo (in)discutible a la (des)estabilización. Un estudio semántico de asambleas ciudadanas políticas". In: CAMUS, Zoé (coord.). Lenguaje y sociedad. Acercamientos, teorías, problemas y perspectivas. Sevilla: Editorial Universidad de Sevilla, Colección Lingüística, 2023, p.19-38.
CAMUS, Zoé e LESCANO, Alfredo. “Semântica argumentativa e conflitualidade política: o conceito de ‘programa’”. Tradução: Ana Lúcia Tinoco Cabral. In: BEHE, Louise; CAREL, Marion; DENUC, Corentin; MACHADO, Julio Cesar (orgs.). Curso de semântica argumentativa. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021, p. 403-416.
CAREL, Marion. L’entrelacement argumentatif. Lexique, discours et blocs sémantiques. Paris: Honoré Champion, 2011.
COLECTIVO PROGRAMMA (ed.). La transformación de lo (im)posible. A propósito de la dimensión semántica de la conflictividad política. Refracción, n°6, 2022.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille plateaux, Paris, Minuit, 1981.
DUCROT, Oswald. 1980. « Analyses pragmatiques », Communications, n°32, 1980, p. 11-60.
FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris, Gallimard, 1969.
LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal. Hegemony & Socialist Strategy. Towards a Radical Democratic Politics. New-York, Verso, 1985.
LESCANO, Alfredo. Prolégomènes à une sémantique des conflits sociaux. Paris, Hermann, 2023a.
LESCANO, Alfredo. “Lo no verbal no es discurso. Acerca de ciertas especificidades de las acciones verbales y no verbales en los conflictos sociales”. In: CAMUS, Zoé (coord.), Lenguaje y sociedad. Acercamientos, teorías, problemas y perspectivas. Sevilla: Editorial Universidad de Sevilla, Colección Lingüística, n.º 84, 2023b, p. 61-81.
MAINGUENEAU, Dominique. Sémantique de la polémique. Lausanne, L’Âge d’homme, 1983.
MORALES AVILA, Fortunato. “Expansion de l’espace sémantique : le cas de l’augmentation du prix des transports publics à Santiago du Chili”. Refracción, n°6, 2022, p.201-222.
PECHEUX, Michel. Les vérités de la Palice. Paris, Maspero, 1975.
PEREIRA DA SILVA, Álvaro Magalhães. “La gripezinha de Bolsonaro. Aspectos semánticos de la posición anti-confinamiento en los discursos del presidente de Brasil del 24 y del 31 de marzo de 2020”. In: CAMUS, Zoé (coord.) Lenguaje y sociedad. Acercamientos, teorías, problemas y perspectivas. Sevilla: Editorial Universidad de Sevilla, Colección Lingüística, nº84, 2023, p.39-60.
ŽIŽEK, Slavoj. “The Spectre of Ideology”. In: ŽIŽEK, Slavoj (ed.) Mapping Ideology. London / New York: Verso, 1994.
Avaliação
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2025.V6.N5.ID824.R
Decisão Editorial
EDITOR 1: Tiago de Aguiar Rodrigues
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5120-0908
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
-
EDITOR 2: Dermeval da Hora Oliveira
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9303-5664
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
-
EDITOR 3: Jan Edson Rodrigues Leite
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9054-0673
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
-
EDITOR 4: Alvaro Magalhães Pereira da Silva
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1980-9750
AFILIAÇÃO: Instituto Federal de Sergipe, Sergipe, Brasil.
-
EDITOR 5: Erivaldo Pereira do Nascimento
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4595-1550
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
-
CARTA DE DECISÃO: O artigo "Ampliando o campo da semântica: da língua aos conflitos sociais", de Alfredo Lescano, representa uma contribuição de grande relevância e inovação para a área do conhecimento, justificando amplamente sua publicação. O trabalho propõe um arcabouço teórico-metodológico robusto, que transcende os limites da semântica da língua para abarcar a complexa dimensão semântica dos conflitos sociais.
Sua relevância reside na observação crítica de que os conceitos tradicionais da semântica linguística são insuficientes para analisar "esquemas de sentido com maior produtividade discursiva em uma determinada situação". Diante dessa lacuna, Lescano, por meio de uma atividade reflexiva transdisciplinar que incorpora elementos da análise do discurso, filosofia política e sociologia, propõe e desenvolve novos conceitos como "espaço semântico", "programa", "desestabilização", "produtividade" e "tensão". Esses conceitos não apenas enriquecem o campo da semântica, mas também oferecem ferramentas inovadoras para a análise discursiva de conflitos sociais.
A aplicação desses conceitos é demonstrada de forma coerente e inovadora na análise de um conflito específico – o retorno de lobos ao território francês –, com uma metodologia de seleção de corpus igualmente inovadora e "integral". Esta metodologia abrange, de forma não seletiva, todas as manifestações públicas sobre o tema em diversas mídias, o que oferece pistas valiosas para futuras pesquisas. A conclusão de que "de um ponto de vista semântico, um conflito social é uma luta por (des)estabilizar potências de agir" é um achado luminoso que condensa a essência da proposta.
Ao situar sua perspectiva teórica em relação a paradigmas amplamente difundidos no cenário linguístico brasileiro, como a análise do discurso de linha francesa e a semântica argumentativa, Lescano não apenas recupera as origens de seu projeto, mas também qualifica os estudos semânticos, enunciativos e discursivos desenvolvidos no Brasil, presenteando a comunidade acadêmica com os fundamentos de uma teoria consistente e promissora.
Rodadas de Avaliação
AVALIADOR 1: Ana Lúcia Tinoco Cabral
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6417-2766
AFILIAÇÃO: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil.
-
AVALIADOR 2: Lauro Gomes
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1302-2693
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil.
-
RODADA 1
AVALIADOR 1
2025-06-10 | 09:18 AM
O trabalho tem por objetivos expor o um arcabouço teórico que permita compreender e analisar a dimensão semântica dos conflitos sociais e apresentar sua aplicação em um caso específico, de forma coerente com os princípios metodológicos propostos. Apresenta, pois, contribuições teóricas e metodológicas para a análise semântica e discursiva de conflitos sociais. Com base na observação de que os conceitos de uma semântica da língua não são suficientes para dar conta de “esquemas de sentido com maior produtividade discursiva em uma determinada situação”, e, por meio de uma atividade reflexiva transdisciplinar, novos conceitos são propostos – espaço semântico, programa, desestabilização, produtividade, tensão. Esses conceitos são aplicados, de forma inovadora, na análise de discursos, sobre um conflito específico. A seleção do corpus é também inovadora e oferece pistas para outras análises. Trata-se de uma metodologia “integral”, que abarca uma categoria totalizante, a qual engloba, de forma não seletiva, tudo o que se publica, se diz publicamente ou se publica nas mídias eletrônicas sobre determinado conflito de ordem social. O processo seletivo centra-se no tema, abrangendo todas as manifestações publicas sobre ele. O estudo proposto concluiu que “de um ponto de vista semântico, um conflito social é uma luta por (des)estabilizar potências de agir”.
-
AVALIADOR 2
2025-05-25 | 11:54 PM
Neste artigo, intitulado "Ampliando o campo da semântica: da língua aos conflitos sociais", Alfredo Lescano presenteia a comunidade acadêmica brasileira com os fundamentos de sua mais nova teoria. Trata-se de uma abordagem teórico-metodológica que, ao lançar mão de conceitos da análise do discurso, da filosofia política, da sociologia, dentre outras disciplinas, dá conta da análise da dimensão semântica dos conflitos sociais. Para explanar suas postulações teóricas, o autor não apenas recupera as origens de seu projeto, mas também elucida como se deu a metodologia de construção do corpus, o qual, neste caso, é constituído por um conflito de grande relevância pública, a saber: "o conflito acerca do retorno de lobos ao território francês". Além disso, Lescano situa sua perspectiva teórica em relação à análise do discurso de linha francesa e à semântica argumentativa, cujos paradigmas auxiliam-no a postular o conceito de "programa", notadamente capaz de caracterizar as unidades semânticas próprias aos conflitos sociais. Haja vista que a teorização apresentada vem sendo construída com extrema coerência epistemológica, os resultados até aqui obtidos revelam-se luminosos. Isso significa assegurar que, inscrita no âmbito de quadros teóricos amplamente difundidos e utilizados por pesquisadores brasileiros, a abordagem ora exposta poderá qualificar os estudos semânticos, enunciativos e discursivos desenvolvidos no cenário linguístico brasileiro.