Resumo para não especialistas
Na ciência da língua (a linguística) predominava o estudo apenas da fala oralizada. Contudo, atualmente sabemos que a comunicação vai muito além do que é oral. Assim, novas perspectivas surgiram, levando em consideração não apenas a fala, mas também os gestos, expressões faciais, entonação, etc. Inserindo-nos nesta perspectiva, nosso objetivo de estudo é analisar como a fala e os gestos funcionam juntos para criar sentidos em uma conversa. Para isso, observamos a interação entre uma criança de 6 anos (sem problemas de desenvolvimento da linguagem) e um adulto. Nossa análise se atenta principalmente para os gestos que representam ações, personagens e objetos, além de observar como aquele que fala e aquele que escuta se relacionam na conversa. Para isso, utilizamos o ELAN (programa de computador) para transcrevermos a fala e descrevermos os gestos de um vídeo em que uma criança narra a história de um desenho animado para seu pai. O principal resultado que encontramos é de que o gesto e a fala se unem para produzir significados. Essas descobertas são muito importantes, pois nos ajudam a entender melhor como a língua funciona.
Introdução
No presente artigo, apresentamos um recorte de nossas pesquisas no projeto “Hesitações no gesto e na fala II: aspectos da disfluência em narrativas infantis” (2023-2024), particularmente o trabalho “Disfluências nas narrativas multimodais iniciais infantis na faixa etária de 6 anos: Os gestos icônicos como evocadores de sentido”, conduzido no âmbito do Programa de Iniciação Científica (PIBIC), financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e vinculado ao Laboratório de Aquisição da Fala e da Escrita (LAFE - UFPB). Aqui nos debruçamo-nos sobre o estudo da matriz gesto-fala, dando foco especial ao gesto icônico, sendo assim, nos inserimo-nos no campo da multimodalidade com intersecção com a semântica e a enunciação.
Ao longo de muitos séculos de pesquisas, nos mais diversos campos de estudos, como a biologia, a psicologia, a oratória etc., a fala e os gestos eram, em suma, estudados de modo dissociado. Os gestos tendiam a ser encarados como elementos paralinguísticos, ou como não linguísticos. Somente no século XX a gestualidade ganha espaço enquanto um fenômeno propriamente linguístico, no qual são destacados, por Ávila-Nóbrega e Cavalcante (2015), os trabalhos de Kendon (2004; 2009) e McNeill (1985; 1992; 2000; 2006). Essa nova visão dos gestos ampliou nossa compreensão da linguagem, pois fez com que formas de expressão que fugiam do escopo da oralidade, antes negligenciadas, fossem percebidas em suas propriedades linguísticas. Isso inclui a prosódia, as expressões faciais, o olhar e a gestualidade, que pode incluir movimentos dos membros superiores (especialmente as mãos), da cabeça, do tronco e até mesmo dos membros inferiores[1].
Quando olhamos para o campo da aquisição da linguagem, percebemos que o estudo dos gestos tem trazido fortes evidências de que o processo aquisicional ocorre de modo multimodal. Para ilustrar, pesquisas como a de Tomasello (2003) indicam que bebês gesticulam desde cedo para se comunicar com seus pares, ou seja, ainda durante o balbucio. Ele descreve o surgimento da gesticulação com funções comunicativas em crianças desde tenra idade, como o uso de apontamentos imperativos (como um pedido por um objeto ou por colo) e declarativos (que buscam direcionar a atenção do adulto para algo específico) que se manifesta por volta dos 9 a 12 meses. Além disso, outros comportamentos envolvem a criação de uma atenção compartilhada entre o bebê e seus pares específicos, sendo a atenção compartilhada um dos pilares essenciais para a comunicação. A pesquisa de Cavalcante (2009) evidencia a participação de crianças, em contexto familiar de interação e atenção compartilhada, utilizando gestos, balbucios, holofrases e elementos prosódicos diversos. Tais observações ressaltam o papel de modos não orais no processo de aquisição da linguagem.
Observamos que, embora a comunicação oral seja a mais valorizada, não apenas no âmbito acadêmico, mas também na nossa experiência diária, a existência de outros modos linguísticos é parte integrante da nossa identidade como sujeitos de linguagem desde o nosso nascimento. Essa natureza da linguagem nos motiva a estudar a língua em seus vários aspectos de maneira integrada, uma vez que eles se manifestam de maneira simultânea. No que concerne nossa focalização multimodal, nos concentramos na relação gesto-fala, apoiando-nos nos trabalhos de Cavalcante et al., (2016) e nos pautando também na hipótese da matriz gesto-fala, apresentada por McNeill (1985; 2006).
Em vista do nosso entendimento multimodal da língua, não marginalizamos os gestos quando tratamos de aspectos semânticos, ou de qualquer outro nível da língua. Portanto, compreendemos que os gestos também compõem a estrutura enunciativa, pautando-nos em nossas interpretações de McNeill (1985; 1992; 2006), Kendon (2004; 2009), Ávila-Nóbrega e Cavalcante (2015), Cavalcante et al. (2016), Cavalcante (2008), entre outros. No que tange aos gestos, focaremos nosso olhar para os gestos icônicos. Eles estão estreitamente ligados ao discurso, servindo para ilustrar o que está sendo dito, delineando formas de objetos ou ações, estabelecendo com o referente uma relação de metonímia, quando, por exemplo, uma pessoa demonstra um objeto físico usando as mãos para mostrar seu tamanho (McNeill, 1985; 2006). E para a concretização de nossos estudos semânticos, nos inserimos na área da aquisição enunciativa, apropriando-nos das teorias de Benveniste (2005), utilizando-nos de Silva (2007), Diedrich et al. (2023), e Ferreira Júnior (2015).
Defendemos que os enunciados são multimodais e, portanto, buscamos evidenciar e entender a relação gesto-fala e como essa relação produz sentidos na narrativa. Para tanto, utilizamos Kendon (2009). No tocante aos gestos, focamos nos gestos icônicos como evocadores de sentido e os analisamos e classificamos com base nos estudos de McNeill (1985; 1992). E englobando essa já complexa análise, identificamos as operações enunciativas realizadas na interação da díade, com atenção às relações estabelecidas entre os componentes da interação do nosso corpus. Para esse último, nos pautamo-nos nas contribuições de Benveniste e remanescentes, já citados. Buscamos solidificar, por meio dessas análises, a composicionalidade multimodal dos enunciados, expandindo seus estudos linguísticos, sobretudo na aquisição enunciativa e na semântica, para além dos estudos estritamente orais ou estritamente gestuais.
Temos por objetivo geral analisar a produção de sentidos dos enunciados em uma narrativa multimodal de uma criança de 6 anos, com desenvolvimento típico de linguagem, em contexto dialógico de narrativa de filme de animação, focando na relação entre gesto e fala, com especial atenção aos gestos icônicos como evocadores de sentido, e nas operações enunciativas realizadas, identificando a configuração da relação eu-tu/ele ao longo da interação. Nossos objetivos específicos envolvem: descrever e analisar os modos de construção e realização dos enunciados de modo multimodal (na relação gesto-fala) da criança, e seus efeitos de sentido na produção narrativa, com ênfase em como o gesto complementa, suplementa ou substitui a fala no contexto narrativo multimodal; investigar a função dos gestos icônicos como evocadores de sentidos nas narrativas da criança, com destaque para qual pessoa (primeira ou terceira pessoa) esses gestos emergem e como contribuem para a construção do enunciado; observar a relação da criança com a língua e o seu interlocutor no processo interacional.
A nossa metodologia é exportada do projeto de pesquisa ao qual esse trabalho se vincula. Detalhando o nosso corpus, este inclui gravações audiovisuais de crianças em situações de díade e narração do desenho animado "Pingu" (vídeo-estímulo). Nossas análises focalizam no gesto e na fala, em seus momentos de sincronização. Aqui, abordamos especificamente a narrativa de uma criança de 6 anos. A transcrição e a avaliação foram feitas no programa EUDICO Linguistic Annotator (ELAN), e compreenderam a transcrição do envelope multimodal.
Consideramos também, sobre o entendimento das narrativas, o trabalho de Melo (2023), que, em sua tese de doutorado, analisa, em uma perspectiva também interacionista e multimodal, as produções narrativas infantis em uma comunidade quilombola, em contextos familiares de díade. Entre as evidências de seu trabalho, Melo constatou a presença de especificidades nas narrativas infantis referentes ao seu grupo étnico, mostrando que as narrativas não se restringiam a fatos reais e/ou de experiência pessoal (que foi vivenciado), mas também apresentavam elementos e acontecimentos imaginários (de indiferença factual).
Justificamos nossa pesquisa pelo seu potencial de contribuição para a compreensão da aquisição da linguagem, com ênfase no campo multimodal e na semântica, e da linguística na totalidade. Ademais, estudos envolvendo os aspectos multimodais mostram-se cada vez mais pertinentes para a aplicação em contextos clínicos, educacionais, além de, claro, ampliar a nossa visão sobre a língua, atualizando-a enquanto objeto em nossos estudos linguísticos.
1. Referencial teórico
1 .1. Os gestos icônicos: evocadores de sentido
McNeill (2006), a partir do trabalho de Kendon, elaborou o que denominou de Continuum de Kendon para a análise dos gestos de caráter linguístico, que empregam funções comunicacionais. Não nos detalharemos neste continuum, mas ele prevê: as gesticulações, que são não convencionais e acompanham geralmente a fala; os emblemas, que são os gestos convencionais de uma língua, como acenar com a mão para cumprimentar alguém ou se despedir; os gestos preenchedores, que ocupam o lugar da fala exercendo uma função sintática; as pantomimas, que contam uma sequência narrativa envolvendo a ação de personagens e ocorrem sem a presença da fala; e os sinais, que se referem às línguas de sinais.
Em McNeill (2006), o autor diz que, em parceria com a pesquisadora Elena Levy, propôs um esquema para categorizar gestos que se adequam ao Continuum de Kendon, exceto os sinais, como complementação para a análise. Essas dimensões são conhecidas como dimensões gestuais de McNeill, e incluem: icônicos, metafóricos, dêiticos e ritmados (beats) (McNeill, 2006). Os dêiticos são os gestos localizadores, tendo o apontar com o dedo indicativo como prototípico, os metafóricos materializam algo abstrato, e os ritmados acompanham o fluxo da fala. O nosso trabalho se concentra-se nos gestos icônicos que representam entidades, tais como pessoas e objetos, e ações, fazendo assim uma referência estrutural aos seus correspondentes. Conforme descrito por McNeill “[...] Such gestures present images of concrete entities and/or actions. [...] The gesture, as a referential symbol, functions via its formal and structural resemblance to event or objects.[1] [...]” (McNeill, 2006, p.4).
Um gesto icônico típico é a formação de um círculo com as mãos para simbolizar uma bola, já que representa uma entidade e, ao ser jogada (gesto de jogar a bola), faz referência à ação, o que também lhe confere iconicidade. Adenda-se que se trata de dimensões, pois podem sobrepor-se uma à outra. Apesar de focarmos nos gestos icônicos, é necessário apresentar os demais devido à recorrência (principalmente dos emblemas e pantomimas) deles em nossos dados (análise feita em nosso projeto) e porque os gestos icônicos aparecem em mescla com as outras dimensões.
Incorporamos às nossas análises duas classificações dos gestos icônicos, trazidas por McNeill (1992). Ele observou, em suas análises com corpus de narrativas, que os gestos icônicos podem apresentar dois pontos de vista assumidos pelo locutor, que são: character viewpoint (C-VPT), em que o falante assume o ponto de vista do personagem em seu gesto, como se estivesse incorporando seu referente; e o observer viewpoint (O-VPT), que enuncia o evento do ponto de vista de um observador (McNeill, 1992, p. 67). Nesse trabalho, convencionamos chamar o C-VPT de gestos icônicos em primeira pessoa, e O-VPT de gestos icônicos em terceira pessoa.
Curiosamente, ao abordar esta categoria, a pesquisa de Demir et al. (2015) analisa os efeitos do uso antecipado de gestos em narrativas infantis na estrutura narrativa subsequente na fala dessas crianças, na idade de 5 a 8 anos. Isso levou, dos efeitos às causas, a efeitos positivos no desenvolvimento narrativo dos infantes que antes faziam uso de gestos em primeira pessoa. Ainda segundo Demir et al. (2015), no caso dos gestos em primeira pessoa, os movimentos do locutor assumem a visão do personagem, e as partes do seu corpo são utilizadas para representar as partes do corpo do personagem – por essa razão, normalmente se utiliza-se o corpo inteiro. No segundo caso (terceira pessoa), os gestos são realizados sob a perspectiva do narrador, e uma parte do corpo - normalmente limitada à região acima do tronco até a cabeça, espaço similar ao utilizado nas línguas de sinais. A geografia no emprego do corpo foi nosso critério adotado para a classificação em nossas análises[1].
2. 2. Gesto-fala: uma matriz de significação
Como já discutimos, por muito tempo a tradição linguística (e de outros campos de estudo), pautada em um entendimento de que a língua é um sistema totalmente autônomo e fechado em si, restringiu o entendimento da língua apenas à sua possibilidade de realização em um único modo, o oral, produzindo um entendimento monomodal da língua. Com a afirmação do estatuto das línguas de sinais enquanto língua, foi possível uma maior flexibilização desse entendimento, mas que ainda enfrenta entraves até hoje (já que as línguas de sinais também passaram a ser entendidas como um sistema autônomo que se realiza exclusivamente de modo cinestésico – ou seja, um entendimento também monomodal). Só com a ampliação dos estudos multimodais é que foi possível o desmanche dessas fronteiras rígidas e a visibilidade de tal fato da língua: a modalidade oral e cinésica podem (para não dizer sempre) ocorrer juntas e com valor linguístico. Ou, nas palavras de Kendon (2009)[1], “[...] We argue that to understand how language has evolved it is necessary to look at what speakers actually do when they construct utterances: they always do this using kinesic and oral resources in a complex orchestration [...]”[2] (Kendon, 2009, p.370) e “[...] the ‘natural’ state of spoken language is a speech-kinesis ensemble and, we must suppose, this has always been the case. [...] (Kendon, 2009, 365)”[3].
Vários estudos, ao analisarem a produção linguística sob a perspectiva da multimodalidade, notaram uma conexão temporal significativa entre gesto e fala (ou seja, ocorrendo simultaneamente). Isso é conhecido como pontos de saliência (McNeill, 2000; Cavalcante et al., 2016). Em relação aos pontos de saliência, nota-se que, apesar da distinção entre suas origens expressivas, esses modos funcionam em conjunto em determinados níveis para a construção de uma unidade unificada de significado. Em outras palavras, os diversos modos de produção são co-expressos nos pontos de co-ocorrência (Cavalcante et al., 2016). São essas evidências que nos levam a entender que gestos são enunciações, e que podem, em maior parte das vezes, já que a língua é multimodal, compor o ato de enunciação, em conjunto com a fala.
De acordo com McNeill (1985; 2006), a sincronização dos modos de produção evidencia não apenas a dimensão temporal semântica discursiva da natureza do gesto e da fala, mas também uma conexão cognitiva que conduz à compreensão da relação entre gesto e fala como uma matriz de produção de linguagem (matriz gesto-fala), isto é, que ocorrem simultaneamente durante o processamento, com gesto e fala entrelaçados em sua origem neural e em sua saída (McNeill, 1985; McNeill 2006).
Com base em Kendon (2004), Almeida (2018) destaca três aspectos da relação entre gesto e fala na produção linguística infantil: o gesto pode complementar o que é expresso verbalmente, exemplificando o que é dito oralmente (como ilustrar uma bola e a ação de jogá-la ao dizer "eu/ele jogou a bola"); o gesto pode suplementar o que é expresso verbalmente, expandindo o significado do enunciado (como incluir expressões de raiva ao relatar que alguém jogou uma bola, levando-nos a formular hipóteses discursivas); e o gesto pode substituir a palavra (como informar que alguém pegou a bola e gesticulou o ato de jogar, em vez de pronunciar o verbo "jogar")[1]. É importante notar que, embora a autora se dedique especificamente à produção infantil, essas relações entre gesto e fala também se manifestam no comportamento linguístico adulto.
2. 3. Possibilitando diálogos: Aquisição, Multimodalidade e Enunciação
Nossa perspectiva assumida sobre o processo de aquisição da linguagem é de cunho sociointeracionista, portanto, consideramos que o processo de aquisição da linguagem se dá no momento da interação do indivíduo com a sociedade. Esse entendimento do processo aquisicional nos leva até um dos grandes nomes da semântica enunciativa, Benveniste, que postula que: “é dentro da, e pela língua que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente” (Benveniste, 2005, p.27), e somente a partir da língua que o indivíduo torna-se sujeito.
Focalizamos as três operações (expostas em parágrafos posteriores) que compõem a prática enunciativa, exposta por Benveniste (2005), que carrega em seu funcionamento as seguintes categorias ou pessoas do discurso: o “eu”, o “tu” e o “ele”. O “eu” e o “tu” são as pessoas da enunciação que se comunicam no momento da interação, sendo o “eu” aquele que locuciona, ou seja, enuncia. Esse “eu” sempre enuncia em relação a um “tu”, o qual se interpreta de maneira mais micro, o “tu” como o interlocutor, e de uma maneira mais macro e abstrata, o “tu” como sociedade. Desse modo, “eu” e “tu” estão sempre em relação, já que a língua só se constitui por meio da enunciação, que por sua vez só se constitui por meio dessa interação entre indivíduo e sociedade.
Na interação, os sujeitos que se posicionam como “eu” e “tu” podem inverter seus papéis/posições: “o que ‘eu’ define como ‘tu’ se pensa e pode inverter-se em ‘eu’, e ‘eu’ se torna um ‘tu’” (Benveniste, 2005, p.253). A forma mais simples de o entender isso é imaginando a seguinte situação: o sujeito “A” assume a posição de “eu” ao enunciar, ou seja, fala algo para o sujeito “B”, que é, portanto, o “tu”; posteriormente, o sujeito “B” inverte os papéis ao enunciar para o sujeito “A”, então temos agora “B” como “eu” e “A” como “tu”. Transpondo essa interação para nossas análises, temos na díade essa relação entre criança e seu parceiro de interação, em que, em alguns momentos, a criança apropria-se do lugar de “eu”, em outros momentos de “tu”, na troca de turnos de fala. É nessa troca entre “eu-tu”, e ao apropriar-se do lugar de “eu”, que se constrói a subjetividade dos indivíduos, e é nesse paradigma enunciativo e interacional que a criança adquire linguagem (Silva, 2007). Como bem aponta Silva (2007):
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[...] De fato, desde o primeiro momento, a mãe fala ao bebê, esperando encontrar, com a sua voz e com o seu olhar, o “outro”. É neste lugar que se atualizam os primeiros sons da criança, que, embora não discriminados, colocam em jogo a intersubjetividade constitutiva da natureza da linguagem, porque, desde o balbucio da criança, alguém toma essa produção como um dizer. E aqui começam a nascer as diferenças que marcam as oposições e, com isso, a semantização da língua em jogo na aquisição. Assim, entendemos que, para adquirir a linguagem, a criança necessita de um “outro” que a torne sujeito dessa aquisição. Através desse “outro”, inicia um longo caminho para encontrar a língua [...] (Silva, 2007, p. 131)
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E antes de retornarmos para Silva (2007), tratemos do último, mas não menos importante, o “ele”. Ao passo que entendemos o “eu” e o “tu” como sujeitos nessa relação enunciativa, o “ele” pode ser entendido como aquele de quem se fala, um não sujeito que é externo à enunciação imediata. Ele não participa da interação “eu-tu”, mas é indispensável para a concretização da fala. Podemos entender o “ele” como o referente de quem/daquilo que o “eu-tu” falam.
Em seu trabalho, Silva (2007), apresenta uma proposta de “[...] estudar o fenômeno aquisição da linguagem no quadro teórico da Lingüística da Enunciação [...]” (Silva, 2007, p. 7). A autora faz insights interessantes e pertinentes ao tomar a teoria de Benveniste para o âmbito da aquisição da linguagem e ao ampliar a leitura da relação “eu-tu/ele”:
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Ao trazer um modo de análise da enunciação, no qual os interlocutores referem e coreferem para produzirem sentidos aos elementos da língua, Benveniste possibilita-nos explicar a inserção da criança como sujeito enunciativo na linguagem, visto concebermos que a apropriação da linguagem pela criança ocorre pelo uso e, sobretudo, pela relação com o “outro”, lugar em que se constitui como sujeito e é constituída pela estrutura lingüística. Nesse sentido, a língua aparece, conforme argumenta o autor, como mediação entre o eu e o “outro”, entre o que é individual e o que é social. Consideramos, a partir das colocações anteriores, que a relação eu-tu (sujeitos) e ele (língua) parece contemplar a explicação do que é regular e do que é único nos dados, uma vez que está em jogo a constituição de um sujeito, que é ao mesmo tempo individual e social. E aqui precisamente vemos como relevantes as questões presentes no interior do quadro benvenistiano para que possamos fazer uma reflexão acerca do fenômeno “aquisição da linguagem”. [...] (Silva, 2007, p. 130-131)
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A língua, externa aos indivíduos e estável, é algo maior, que serve de suporte para a interação entre "eu" e "tu". Nesse sentido, a autora amplia o conceito de Benveniste, sugerindo que a língua seria uma espécie de terceira entidade, externa à individualidade específica de "eu" e "tu", mas presente de forma estruturante na relação dos dois, o “ele”. O "ele", compreendido de uma forma mais ampla, é a língua, a estrutura maior que ambos os sujeitos (“eu” e “tu”) manipulam, compartilham e usam para se comunicar – esse sistema externo é internalizado, através das trocas enunciativas entre “eu-tu”, para que o sujeito adquira a linguagem e também possa ser um sujeito na língua e construa a sua subjetividade. E ainda existe mais um componente nessa interação, o “ELE”, que se refere à cultura (Silva 2007).
Inserido nessa proposta de Silva, ou seja, no campo da Aquisição enunciativa, temos as produções do projeto "A narrativa infantil no cenário da pandemia de Covid-19: alterações no simbolismo da linguagem" (2021-2023). A partir deste projeto, Diedrich et al. (2023) examinam as narrativas infantis, destacando sua conexão com o conceito de "imaginação criadora", partindo da perspectiva da Aquisição enunciativa e com base benvenistiana. Portanto, os escritores focam nos "movimentos que a criança faz entre a persistência da língua como sistema e a transitoriedade da mesma no discurso, com ênfase no ato de narrar" (Diedrich et al., 2023, p.21). Em outras palavras, o falante se apropria de uma estrutura estável, já estabelecida e compartilhada, a língua, e a vivência, e a atualiza de maneira única em sua utilização discursiva.
Nesse ponto, retomamos o que prometemos, as três operações que compõem a prática enunciativa. Trazemos as palavras de Diedrich et al. (2023), que explicam de maneira exímia essas operações, bem como afirmam de seu trabalho o que também entendemos do nosso, a respeito do enfoque dado às narrativas (nosso instrumento de evidenciação da língua) nessas operações:
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[...] a) a operação de preenchimento de lugar enunciativo, a qual se volta para a mudança de posição da criança de convocada pelo outro (conjunção eu-tu) a convocar o outro (disjunção eu/tu); b) a operação de referência, a qual, no exercício do discurso, permite que os signos, enquanto entidades conceptuais e genéricas, sejam utilizados como palavras para noções sempre particulares, sendo que esta operação se volta para a passagem vivida pela criança de uma referência mostrada (ancorada na situação de enunciação) para uma referência constituída no discurso (ancorada no próprio discurso); e c) a operação de inscrição enunciativa da criança na língua-discurso, para cuja realização concorrem as formas de pessoa, espaço e tempo, por meio das quais a criança estabelece relações enunciativas mais complexas, envolvendo a retomada de eventos passados, a projeção de acontecimentos futuros e, principalmente, a simulação de acontecimentos apenas imaginados. A narrativa é focalizada em relação com a segunda operação, a de referência, no entanto, entendemos que as três operações, em alguma medida, encontram-se relacionadas entre si. (Diedrich et al., 2023, p.20, grifo nosso)
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Com trabalhos circunscritos no campo de Aquisição Enunciativa, Ferreira Junior (2015) se encaminha em uma análise linguística que une aquisição, multimodalidade e enunciação. Citamos o seu trabalho, “A emergência dos índices de pessoa na enunciação infantil”, um dentre seus tantos trabalhos nesse viés. O autor estuda a inserção da criança enquanto sujeito na língua, a partir dos índices de referenciação e da interação na díade mãe-bebê. Vemos que análises que trafegam pelo caminho da Aquisição multimodal, sobreposto ao caminho da Aquisição enunciativa, são um mundo de pesquisa totalmente possível e produtivo.
2. Metodologia
Como já mencionamos, em razão de estarmos apresentando um recorte de uma pesquisa maior, nossa metodologia é a mesma desse projeto, somando-se a nossa maior focalização sobre os gestos icônicos sob a luz da Semântica enunciativa. A execução do estudo envolveu as seguintes fases: (i) leitura, pesquisa e estudos teóricos e metodológicos; (ii) transcrição dos dados; (iii) análise dos dados; e (iv) finalmente, a organização e apresentação do estudo realizado.
As transcrições dos nossos dados audiovisuais foram feitas utilizando o software EUDICO Linguistic Annotator (ELAN). O corpus provém dos dados de Almeida (2018), doados ao LAFE, e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFPB sob o número 0438/16. Nele constam gravações audiovisuais de 25 crianças em contexto de díade, na faixa etária entre 2 e 6 anos, divididas em cinco grupos com base na faixa etária: grupos A (2 anos), B (3 anos), C (4 anos), D (5 anos) e E (6 anos) – todas incluídas em nossa análise. O presente trabalho de pesquisa detém-se ao grupo E, ou seja, às crianças com 6 anos, em específico, aos dados da criança I.F.
Em relação ao corpus, as gravações audiovisuais retratam crianças em situação de díade, ou seja, interagindo com o outro, normalmente a mãe ou o pai. Após serem expostas ao vídeo estímulo (episódio “Pingu and the giant snowbal”, em português, “Pingu e a bola de neve gigante”, do desenho em animação “Pingu”), as crianças são instruídas a narrarem o que foi assistido para o outro integrante da díade – que, por sua vez, é instruído a sustentar a fala da criança, fazendo a manutenção de turno e incentivando sua ação narrativa, como ocorre nas interações naturais.
Em razão de realizarmos a transcrição de todo o envelope multimodal de cada integrante da díade, ou seja, os modos de produção cinestésico e vocais: produção oral, gestual, facial e expressão do olhar (os gestos dos membros e troncos foram separados dos da face em nossas análises), adotamos um método de diferenciação dos modos de produção, em nossas transcrições, pensando também na necessidade de exportação dos dados. Nesse processo, foram criadas trilhas para cada um dos modos de produção, além de trilhas para nossa análise dos gestos. Foi adotada a notação do LAFE: Fala entre aspas (“ descrição da fala”); Gestos entre parênteses ((descrição dos gestos)); Olhar entre asteriscos (*descrição do olhar*); e Expressão facial entre colchetes ([descrição da expressão facial]).
Em razão da análise das disfluências em nosso projeto, será encontrada também nos nossos dados a marcação de hesitações, forma pela qual percebemos as disfluências, sendo elas: alongamento hesitativo marcado com dois pontos (::); interrupção marcada por barra (/); pausas silenciosas marcadas por jogo da velha (#); e repetições hesitativas marcadas por chaves {palavra ou fone repetido}. Essa notação e nossa concepção acerca foram adaptadas do trabalho de Chacon e Villega (2012).
No que diz respeito à notação adotada, em situações de alongamento que não fossem de disfluência, usamos os dois pontos (:) apenas uma vez; ao descrever algo que não pode ser diretamente transcrito, mas pode ser nomeado, e que seja de caráter linguístico (como murmúrios, grunhido, muxoxos, grito, ou destacar que o falante falou baixo, etc.), foi escrito entre parênteses duplos (por exemplo, “ela pulou e ah:((gritos))”); e comentários complementares que podem influenciar a análise, mas que não seja de caráter linguístico, foram escritos entre os sinais de maior (>) e menor (<) (por exemplo, “ aí o meninin ap…((palavra incompreensível)) <a criança estava comendo pipoca, dificultando a compreensão integral de sua fala>”).
3. Análise dos Dados
Na Tabela 1, consta o trecho que selecionamos para nossas análises. O nome do falante é referenciado na primeira coluna, e os modos transcritos na segunda coluna. Cada linha pode conter um dos falantes ou ambos (nos momentos em que houve sincronia dos modos de produção de ambos, destacamos com a cor de fundo da linha marcada em verde). No que se refere à parte escrita da transcrição na tabela, a cor da fonte do adulto na díade está marcada em roxo, e da criança em preto. Cada linha da tabela preza pela sincronia dos modos de produção e temporalidade, e possui o tempo de ocorrência em horas:minutos:milissegundos, e foram numeradas para facilitar a exposição da análise. A classificação dos gestos consta também na transcrição.
Figure 1. Tabela 1. Trecho da transcrição multimodal da díade (I.F.) Fonte: Elaboração própria (2024).
3. 1. Operação de preenchimento de lugar enunciativo e troca de turnos
Na linha 1 da tabela, vemos o pai, sujeito na condição “eu”, estabelecendo a comunicação e convocando a criança para a interação, mais uma vez, na linha 3. Na linha 4, a criança começa a narrar o que viu no vídeo estímulo. A partir desse momento, a criança, antes “tu” no jogo enunciativo, apropria-se do lugar de “eu” na enunciação, realizando a operação de preenchimento de lugar enunciativo. Agora é a criança que convoca seu parceiro comunicacional para a interação. Vemos esse processo ao longo de toda a narrativa, conforme a criança, em condição de “eu”, narra o acontecido para o pai (tu), no decorrer dessa troca, às vezes o pai retorna ao lugar de “eu”, por meio de perguntas e feedbacks que ajudam a criança a sustentar a sua narrativa e revelam o seu interesse na interação. O pai toma a criança como sujeito, tal qual a criança toma o pai como sujeito.
Sobre esses momentos de manutenção da interação, realizados pelo pai, destacamos, além do já citado, as linhas 5, 6, 8, 10, 13, 15, entre outros momentos. O pai faz indagações, mostrando interesse em se situar na narrativa, ri e concorda. Infelizmente, devido às limitações da gravação, nem sempre foi possível observar aspectos multimodais na enunciação do pai, salvo alguns momentos que discutiremos agora. Na linha 18, além de falar “an”, o pai também produz um gesto emblemático, “(meneia a cabeça para cima e para baixo em sinal de afirmação: EMBLEMÁTICO)”, que se complementa à fala, fazendo manutenção do seu canal de fala (eu te ouvi e pode prosseguir). Algo similar acontece também na linha 10, indicando admiração. O gesto aparece compondo o enunciado do pai nesse momento, em conjunto com a fala, formando uma unidade de sentido. Vemos também o gesto compondo sozinho a enunciação do pai nas linhas 14 ((joga o tronco para trás em sinal de espanto/admiração: GESTICULAÇÃO)) e 20 ([sorri]).
3.2. Operação de referência
Já identificamos quem é o “eu” e o “tu” na relação. Tomando a perspectiva de Silva, o “ele”, obviamente, é a língua e o “ELE” o vídeo-estímulo, o desenho animado, posto que é dele e de tudo aquilo que o compõe (personagens, ações, sequência narrativa, etc.) que o “eu” e o “tu” falam. Enquanto o “ele” (a língua) é todo o aparato estável que permite à criança realizar a operação de referência.
O vídeo-estímulo é ancorado na situação da enunciação por meio do estabelecimento entre os sujeitos de que é sobre aquilo que será falado/referido (vamos falar do que aconteceu com o “Pingu”). Aqui, os signos, ou melhor, o referente na totalidade, são apropriados e utilizados pela criança, materializados por enunciados que possuem a liberdade de constituição multimodal, ou seja, podem ser (e são) compostos por gesto e fala. Nesse processo de ancoragem, e a partir da operação de preenchimento de um lugar enunciativo, a criança ancora sua referência no discurso presente, imediato. O “ELE” continua fora do contexto enunciativo imediato, mas participa dele à medida que essa ancoragem é feita – movimento de apropriação e uso da língua, externo ao indivíduo. Temos a operação de referência. Por isso, Diedrich et al. (2023) apontaram que a narrativa é um gênero que focaliza nessa operação, pois só é possível narrar sobre algo, tendo o conhecimento sobre esse algo. Mesmo que esse algo seja não factual, já que consideramos a perspectiva de Melo (2023), esse algo ainda é algo de que se fala, e ainda só é possível graças à língua – um referente ainda existe.
3. 3. Operação de inscrição enunciativa
A operação de inscrição enunciativa envolve a marca da criança, sua assinatura. Apesar da língua ser estável e comum a todos, no momento da enunciação, ao realizar as operações de preenchimento do lugar enunciativo e de referência, as escolhas que a criança opera sobre a língua, a organização que a mesma faz sobre ela, e como ela ajusta sua enunciação na relação “eu-tu”, são realizações singulares. Mesmo que as crianças do corpus tenham sido expostas ao mesmo vídeo-estímulo, suas narrativas nunca são iguais: as falas não são as mesmas; os gestos não são os mesmos; e a interação não é a mesma. É no conjunto dessas operações realizados no ato enunciativo que a criança adquire linguagem e se constitui como sujeito de sua língua.
3. 4. Gestos icônicos: pinguins, bola de neve e ações
Na linha 9 temos a primeira aparição do gesto icônico, realizado em conjunto com a fala. Esse gesto, além de icônico, também é ritmado, ao passo que se repete marcando o fluxo da fala. É um gesto icônico por representar a ação de jogar a bola, além de materializar uma entidade, evocada na mão fechada em punho, representando a bola de neve. O gesto é enunciado utilizando os membros superiores, indicando um distanciamento do personagem, ou seja, é um gesto em terceira pessoa (O-VPT). Em conjunto, a criança fala "eles tavam jogando a bola de neve um no outuo", portanto, temos aqui tanto a fala como o gesto em terceira pessoa, e em relação à complementação, já que não ocorre acréscimo de informações e nem substituição.
Na linha 11 temos mais um gesto icônico, materializando na enunciação a ação (fazer a bola de neve) e a forma (a bola de neve e o personagem) do seu referente, sendo a imagem reforçada a partir da manipulação de outro objeto (o tecido TNT). O gesto icônico é realizado a partir do uso do corpo inteiro, como se a criança fosse o pai do “Pingu” a fazer a bola de neve maior, que ele descreve na fala. Observando a relação gesto-fala, temos também uma relação de complementação nessa unidade enunciativa, entretanto, a fala ocorre em terceira pessoa, enquanto o gesto ocorre em primeira pessoa.
Na linha 12, a criança continua a cena pantomímica de 11, produzindo um enunciado composto dos modos gesto e fala. Esse gesto icônico por si só já nos situa em relação à sequência de acontecimentos da narrativa, ao passo que carrega a ação realizada pelo personagem (erguer a bola), o que está sendo erguido (a bola, a partir do que entendemos do enunciado anterior) e ocorre em primeira pessoa. Na verdade, pensando na relação entre 11 e 12, temos que em 11 (ele fez isso e) e em 12 (isso), mas não é nossa proposta observar aspectos sintáticos. Aqui a fala também ocorre em primeira pessoa, com o gesto, ao passo que a criança incorpora não só a ação do personagem, mas também a sua fala. Os grunhidos de esforço estabelecem uma relação de suplementação com os gestos, pois a partir da fala temos o acréscimo de que a bola de neve está pesada, o que explica por que ela não foi erguida mesmo após três tentativas do I.F./pinguim.
Na linha 14, a fala aparece em terceira pessoa ("aí o papai fez uma maior:") em conjunto com o gesto icônico (também evocando ação e entidades)[1]. O gesto que aparece (com o corpo inclinado para frente e para baixo, empurra, com as mãos, a bola de neve imaginária, dando voltas em círculo: PANTOMIMA ICÔNICO), ocorre em primeira pessoa, e nesse caso, na relação gesto-fala, o gesto é que exerce a função de suplementação em relação à fala, ao indicar o modo como essa bola de neve ficou maior (rolando-a no chão em círculos).
Em vários momentos, a criança manipula a bola de neve imaginária, materializada pelos enunciados gestuais-vocais, sobretudo por meio dos gestos icônicos, de modo a posicioná-la no espaço real da enunciação para servir aos seus propósitos narrativos. Os momentos que mais ilustram isso são: na linha 17, ao posicionar a bola para perto de seu corpo; na 19, ao posicionar a bola para execução do enunciado; e na linha 20, que também mostra manipulação do objeto num espaço, ao levá-lo até a montanha também imaginada.
Produzimos um estalo sobre o potencial da iconicidade e sobre os enunciados em que os gestos icônicos realizam-se em primeira pessoa, e também da fala em primeira pessoa: (i) em vários momentos a criança incorpora o personagem, de modo que para ela, ela é o pinguim; (ii) a criança materializa não só o personagem, não só suas ações e não só objetos, mas também o cenário do seu referente, construindo um mundo narrativo que varia em percepção tanto para o “eu” como para o “tu”, mas que inegavelmente está presente (como a montanha à direita da criança, os iglus a esquerda, que aparecem em um trecho da narrativa que não está presente no recorte que trouxemos) e é compartilhado na díade; e o (iii) é que se para a criança ela é o personagem “Pingu” em vários momentos, podemos entender que o pai do “Pingu” é o outro pinguim que aparece na narrativa, mesmo que a criança assuma o papel de narrar e interpretar ambos em sua narrativa.
Para esclarecer melhor esse (iii) ponto, é importante destacar que os dois personagens narrados nesse trecho, em seu referente, o desenho, não são pai e filho (conforme narrado por I.F.), mas sim “Pingu” e seu amigo pinguim – somente posteriormente, nesse episódio, o pai do “Pingu”, o carteiro, aparece. Podemos imaginar que a criança não saiba dessa informação, e tenha interpretado dessa forma. Mas achamos isso pouco provável, já que, além do desenho ser popular (muitas crianças do corpus conheciam o desenho), na linha 5 a criança fala "uma coisa que você nunca viu no paingu", nos levando a pressupor que o seu pai (interlocutor) conhece o “Pingu” (logo, pressuposto que ele também conhece), só não tem conhecimento especificamente do que aconteceu nesse episódio. A criança trata do desenho e do personagem “Pingu” como um referente comum a ambos, tanto que a criança escolhe não introduzir e nem caracterizar os personagens e nem o cenário. Poderia ter ocorrido uma projeção da díade na narrativa, ou seja, a projeção da relação pai-filho da díade na relação dos personagens de seu referente narrativo? É algo que não temos pistas suficientes para concluir, mas mostra-se um aspecto curioso.
3. 5. Um mundo narrativo na enunciação imediata
No contexto de enunciação imediata, temos o que foi descrito até agora: a criança e o pai (eu-tu) interagem a partir de um referente (ELE), utilizando-se de um sistema de referenciação (ele); a interação é guiada pelas operações enunciativas realizadas pela criança, posto que é ela quem narra, objetivando tornar o “ELE” um referente comum para o seu interlocutor. Nesse processo, a criança materializa/ancora seu referente, construindo um mundo narrativo (que é um reflexo de seu referente, não idêntico, pois é subjetivo), e transita por esse mundo narrativo em sua operação de inscrição enunciativa. É como se a criança tivesse criado um mundo narrativo (C), contido no contexto narrativo imediato (A), que diz respeito ao seu referente (B). A criança, dentro do contexto imediato (A), transita entre ele (sem sair) e o mundo narrativo (C). É um mundo concreto discursivamente, não fisicamente, mas que se instaura conforme existe (conforme é enunciado) no espaço físico. Se nos aventurarmos na matemática, temos a seguinte representação:
Figure 2. Figura 1. Esquema representacional da proposta de mundo narrativo e sua relação com o contexto de enunciação imediata (eu-tu) e com o referente (ele), através de conjuntos Fonte: Elaboração própria (2024).
4. Considerações finais
A partir da análise multimodal, percebemos os comportamentos de complementação, substituição e suplementação estabelecidos na relação entre os modos de produção da linguagem. O gesto e a fala, como defendido por Cavalcante et al. (2016), atuam em conjunto na formação de uma unidade de sentido. Tais conclusões corroboram com o nosso posicionamento sobre o caráter multimodal dos enunciados.
Observamos o potencial dos gestos icônicos para a produção de sentidos e para a produção narrativa do infante. Os gestos icônicos fornecem um poderoso arsenal narrativo informacional para a díade, ao possibilitar a materialização de seu referente de modo mais concreto – através de entidades e ações – no contexto enunciativo. Ademais, percebemos que sua expressão semântica se expande no conjunto enunciativo, ao mesclar-se com outras dimensões gestuais e auxiliar na construção do cenário narrativo – ou mundo narrativo, como bem tratamos. Esse mundo narrativo constitui a imagem do espaço em que ocorre seu referente. Ao pensarmos nos elementos básicos da narrativa – enredo, personagens, tempo, espaço e narrador –, percebemos que os gestos icônicos foram capazes de concretizar quase todos esses elementos (exceto o tempo) e colaborar na construção da narrativa.
Outro aspecto observado é a possibilidade que o gesto icônico fornece ao narrador de transitar entre o narrador em terceira pessoa, a primeira pessoa, tornando-se narrador-personagem. Podemos observar esse movimento de forma flexível nos gestos, o que não acontece na fala, já que observamos momentos em que o gesto ocorria em X pessoa e a fala em Y. Essas observações merecem ter sua investigação continuada, sobretudo para a compreensão de como esse fato se relaciona com a hipótese da matriz gesto fala: Será que, apesar de os modos operarem em matriz, existe ali um nível de independência em cada modo, que, inclusive, os livra da redundância? A perspectiva assumida na narração estaria associada a fatores como idade e gênero discursivo?
Ao destacar as operações enunciativas e seus componentes, percebemos a ocorrência das operações de: preenchimento do lugar enunciativo que é ocupado pela criança e alternado na díade na relação “eu-tu”; operação de referência, na qual a criança, a partir do aparato “ele”, materializa o seu referente (ELE); e a operação de inscrição enunciativa, resultado do complexo processo.
Informações Complementares
Conflito de Interesse
Os autores não possuem conflito de interesse a declarar.
Declaração de Disponibilidade de Dados
Os dados que apoiam as descobertas deste estudo estão disponíveis no banco de dados do Laboratório de Aquisição da Fala e da Escrita (LAFE - UFPB). Os dados que apoiam as descobertas deste estudo estão disponíveis no banco de dados do Laboratório de Aquisição da Fala e da Escrita (LAFE - UFPB). Restrições se aplicam à disponibilidade desses dados, que foram usados sob licença para este estudo. Em detalhes, os dados foram utilizados no projeto do qual se resultou este artigo a partir da aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFPB sob o número 0438/16, e apresentados neste artigo mediante a autorização por meio de uma declaração da pesquisadora responsável pela coleta original, Andressa Toscano Moura de Caldas Barros de Almeida ou Almeida (2018), como consta nas referências. Os dados serão disponibilizados mediante solicitação com a pesquisadora Almeida (2018), ou, preferencialmente, de forma intermediária, por meio de uma das autoras deste artigo, Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (com a permissão dos detentores originais dos direitos). Os dados serão disponibilizados mediante solicitação à autora Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante e com a permissão dos detentores originais dos direitos.
Declaração de Uso de IA
Os autores declaram o não uso de Inteligência Artificial (IA) no desenvolvimento e registro escrito desse trabalho.
Referências
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Avaliação
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2025.V6.N5.ID849.R
Decisão Editorial
EDITOR 1: Tiago de Aguiar Rodrigues
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5120-0908
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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EDITOR 2: Dermeval da Hora Oliveira
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9303-5664
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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EDITOR 3: Jan Edson Rodrigues Leite
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9054-0673
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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EDITOR 4: Alvaro Magalhães Pereira da Silva
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1980-9750
AFILIAÇÃO: Instituto Federal de Sergipe, Sergipe, Brasil.
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EDITOR 5: Erivaldo Pereira do Nascimento
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4595-1550
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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CARTA DE DECISÃO: O artigo "Eles tavam jogando a bola de neve um no outuo": os gestos icônicos como evocadores de sentido em cenas pantomímicas infantis na faixa etária de seis anos" destaca-se por analisar a produção de sentidos evocados pela composição gesto-fala e sua relação na composição dos enunciados, com especial atenção aos gestos icônicos em interações infantis na faixa etária de seis anos. A relevância do estudo reside em sua abordagem multimodal da aquisição da linguagem, desafiando a concepção logocêntrica de língua ao demonstrar que os gestos, especialmente os icônicos, produzem tanto sentido quanto as palavras, particularmente quando produzidos em conjunto. Essa perspectiva é crucial para a compreensão da complexidade da comunicação humana e da negociação de sentidos entre interlocutores. Essa investigação não apenas enriquece os estudos em aquisição da linguagem sob o viés da multimodalidade, mas também oferece insights valiosos para profissionais da educação básica (Educação Infantil e Ensino Fundamental), pedagogos, linguistas, fonoaudiólogos e psicólogos.
Rodadas de Avaliação
AVALIADOR 1: Maria Cristina Lobo Name
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5625-9503
AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.
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AVALIADOR 2: Paulo Vinícius Ávila Nóbrega
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5622-065X
AFILIAÇÃO: Universidade Estadual da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2025-05-18 | 05:03 PM
O artigo trata da multimodalidade - gesto-e-fala usados em conjunto na comunicação linguística - na interação criança-adulto. O texto é muito claro, bem desenvolvido e traz análises cuidadosas dos dados apresentados. O trabalho é de interesse para profissionais da educação básica (em particular, da Educação Infantil e do Ensino Fundamental), pedagogos e linguistas, dentre outros.
O artigo - “Eles tavam jogando a bola de neve um no outuo”: os gestos icônicos como evocadores de sentido em cenas pantomímicas infantis na faixa etária de seis anos - analisa “a produção de sentidos evocados pela composição gesto-fala e sua relação na composição dos enunciados, com especial atenção aos gestos icônicos, identificando a configuração da relação eu-tu/ele ao longo da interação.” O objetivo geral se desdobra em três objetivos específicos: (i) “descrever e analisar os modos de construção e realização dos enunciados de modo multimodal (...)”; (ii) investigar a função dos gestos icônicos como evocadores de sentido (...)”; e (iii) “observar a relação da criança com a língua e seu interlocutor no processo interacional”. O trabalho se pauta em referencial teórico robusto e de acordo com os objetivos propostos. Destaco a análise dos dados bem conduzida, dialogando com as propostas teóricas apresentadas, e a fluidez do texto, claro e bem estruturado. Sua contribuição é relevante para a continuidade dos estudos em aquisição da linguagem sob o viés da multimodalidade, e é de interesse para profissionais da educação básica (em particular, da Educação Infantil e do Ensino Fundamental), pedagogos e linguistas, dentre outros. Pelo exposto, sou favorável à publicação do artigo.
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AVALIADOR 2
2025-07-10 | 04:29 PM
O texto trata da interação humana por meio do uso de gestos icônicos e produções orais/vocais na negociação de sentidos da linguagem. É um texto fundamental para profissionais da linguagem, bem como de estudantes com interesses nas teorias da linguagem. A vertente da multimodalidade, central na fundamentação do texto, pode ser útil para a sociedade em geral perceber outros funcionamentos da linguagem, para além da escrita e da leitura.
O artigo científico da equipe tem uma relevância fundamental para a contribuição de formação de profissionais da linguagem, tanto linguistas, fonoaudiólogos, antropólogos, psicólogos etc. É um texto atual, que relaciona o uso de gestos icônicos e produção oral/vocal na interação humana, com negociação de sentidos entre os parceiros. O texto submetido pode contribuir para a esfera acadêmica, ainda, no que tange à mudança da concepção de língua como logocêntrica, para uma concepção de língua como multimodal, em que os gestos produzem tanto sentido quanto as palavras, principalmente, quando produzidos conjuntamente.