Resumo para não especialistas
Você já observou as metáforas que as crianças utilizam quando estão falando ou quando estão narrando algo a alguém? Neste artigo, buscamos descrever como se estabelecem as metáforas na narrativa de uma criança de 5 anos, a fim de aprofundar o conhecimento acerca do tema aquisição da linguagem. Nas vivências com as pessoas ao seu redor, a criança adquire a sua língua e passa a se comunicar, a falar, por meio dos símbolos dessa língua. As experiências na linguagem possibilitam que ela ao falar, ao narrar fatos reais ou imaginários, estabeleça novos usos para determinadas palavras, como no dado que está no artigo: a criança chama o limpa-trilhos de limpador de para-brisa dos trens. Estabelece analogias entre as formas e os sentidos da língua e mobiliza, no discurso, novos empregos para palavras e expressões da língua.
Introdução
No texto “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística” (2020), Benveniste manifesta o seguinte entendimento referente à metáfora:
A linguagem oferece o modelo de uma estrutura relacional, no sentido mais literal e mais compreensivo ao mesmo tempo. Relaciona no discurso palavras e conceitos, e produz assim, como representação de objetos e de situações, signos que são distintos dos seus referentes materiais. Institui essas transferências analógicas de denominações que chamamos metáforas, fator tão poderoso do enriquecimento conceptual. Encadeia as proposições no raciocínio e torna-se no instrumento do pensamento discursivo. (BENVENISTE, 2020, p. 40, grifos nossos).
Ao analisar dados de crianças com o objetivo de observar os deslocamentos simbólicos evocados nas suas narrativas na aquisição da linguagem no projeto de pesquisa “A narrativa da criança no contexto da pandemia de Covid-19: deslocamentos no simbólico da linguagem”1, surge-nos a curiosidade de investigar as “transferências analógicas de denominações” constituídas no discurso das crianças. Construções estabelecidas pelos falantes de maneira particular no ato enunciativo, com a intenção de manter um diálogo com o tu - o outro da enunciação - na cena enunciativa.
Partimos da seguinte questão norteadora: Qual o papel das relações enunciativas no estabelecimento das “transferências analógicas de denominações”, as metáforas, mobilizadas nas narrativas da criança? Buscando resposta para esta questão, apresentamos, no decorrer do trabalho, um dado em que há a narrativa de uma criança de 5 anos, caracterizado pela presença, no discurso, de relação metafórica. Para guiar nossa análise, nos apropriamos principalmente do conceito de “transferências analógicas de denominações” e da concepção de língua, linguagem, enunciação e as complexas formas de expressão propostas por Benveniste, questões presentes nas obras Problemas de Linguística Geral I e Problemas de Linguística Geral II. Além disso, estabelecemos diálogo desde Jakobson (2007) até pesquisadores dos nossos dias, como De Lemos (1998; 2002), Fiorin (2008), Silva (2009), Flores (2013), Silva (2016) e Diedrich (2020), os quais nos ajudarão a entender melhor as relações metafóricas estabelecidas no ato discursivo, em especial, no ato discursivo das narrativas da criança em aquisição da linguagem.
Nosso objetivo é descrever como se estabelecem as “transferências analógicas de denominações”, as metáforas, nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem. Por isso, inicialmente gostaríamos de pontuar algumas perspectivas que nos ajudam a entender a aquisição da linguagem. Em nosso entendimento, a narrativa é uma manifestação enunciativa da qual a criança se apropria para constituir o seu dizer e revela-se terreno fértil para a constituição das metáforas. Assumindo esse posicionamento, voltaremos nosso olhar, mais especificamente, para a metáfora e sua manifestação na linguagem da criança.
1. A aquisição de linguagem a partir da perspectiva enunciativa benvenistiana
A criança, desde o seu nascimento, faz parte de uma sociedade que estabelece relações via linguagem numa dada língua. Benveniste (2020, p. 30) define a linguagem como “faculdade humana, característica universal e imutável do homem”, a qual “se realiza sempre dentro de uma língua, de uma estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e particular” (BENVENISTE, 2020, p. 40, grifo do autor). Para o autor, língua e linguagem são dois polos que apresentam características próprias, no entanto uma depende da outra na sua manifestação.
Ao apreender a língua, a criança se estabelece como indivíduo de uma sociedade. “O despertar da consciência na criança coincide sempre com a aprendizagem da linguagem, que a introduz pouco a pouco como indivíduo na sociedade” (BENVENISTE, 2020, p. 37). Afirmamos, com Benveniste (2020), que se trata de um indivíduo de uma sociedade simbólica, que estabelece relações simbólicas, já que “não há relação natural, imediata e direta entre o homem e o mundo, nem entre o homem e o homem. É preciso haver um intermediário, esse aparato simbólico, que tornou possíveis o pensamento e a linguagem” (BENVENISTE, 2020, p. 40).
“A faculdade de simbolizar”, a qual é caracterizada por Benveniste no texto “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística” (2020, p. 37, grifo do autor), só é possível na e pela linguagem, pois é essa faculdade que nos permite “representar o real por um ‘signo’ e de compreender o ‘signo’ como representante do real.”. Essa capacidade desperta logo ao nascer na criança, “na aurora da sua vida consciente2” (BENVENISTE, 2020, p. 37, grifos do autor).
O despertar dessa faculdade implica a interação com os outros de seu convívio. Desde o nascimento, quando a criança ensaia suas primeiras palavras, o adulto assume o papel de “traduzir” os balbucios para enunciados existentes na língua, possibilitando então que essa criança signifique no simbólico da linguagem. Na interação entre o eu e o tu, em situações enunciativas, a criança apropria-se da sua língua materna e passa a estabelecer relações simbólicas com os que a rodeiam.
Apesar de Benveniste não apresentar uma teoria acerca da aquisição da linguagem, Silva (2009) propõe um dispositivo teórico-metodológico derivado de princípios benvenistianos sobre língua, linguagem e enunciação, para caracterizar o processo de aquisição da linguagem: (eu-tu/ele)-ELE, no qual estão implicados a criança (eu), o outro de seu convívio (tu), a língua (ele) e a cultura (ELE) no ato de aquisição da linguagem. A criança na relação com o outro de seu convívio apreende a sua língua e, junto dela, a sua cultura.
No convívio com o outro, a criança vive experiências simbólicas, constituindo-se então falante da sua língua materna. Dos balbucios e da dependência do outro, a criança desenvolve-se e nas relações de convívio aprende a língua na qual está imersa, fazendo uso dessa língua, por exemplo, em forma de narrativas. Através da narração de fatos reais ou imaginários, a criança estabelece relações de tempo nos seus enunciados, traz para o “aqui” e o “agora” da enunciação fatos vivenciados em outro “aqui-agora”, reproduzindo pela linguagem dada realidade.
2. A experiência narrativa como ato de enunciação
Silva (2009) estabelece a aquisição da linguagem como ato: “enunciação é ‘ato de enunciar na língua’ e aquisição é ‘ato de adquirir uma língua’” (SILVA, 2009, p. 153, grifos do autor). Nessa perspectiva, pensamos a narrativa como ato, concebendo-a “na relação constitutiva da língua e da cultura” (DIEDRICH, 2020, s.p.). Assim nos posicionamos porque a criança vive experiências com narrativas de diversas formas desde bem pequenininha, através das cantigas de ninar, dos desenhos animados, das cantigas de rodas, da contação de histórias.
Ao pensar na narrativa como ato, Diedrich (2020) defende que a experiência na linguagem se presentifica na narrativa como uma evocação de experiências anteriores na linguagem. Considerando que a linguagem é sempre simbólica, Benveniste (2020) nos move a assumir um determinado olhar para a aquisição, dando destaque ao que esta capacidade representa na constituição da criança falante. Quando nos referimos a experiências, pensamos naquelas do mundo simbólico e não do mundo físico, pensamos nas experiências de significação no simbólico da linguagem3 que se marcam na língua-discurso, uma vez que “a linguagem reproduz o mundo, mas submetendo-o à sua própria organização” (BENVENISTE, 2020, p. 36), pois a faculdade de “simbolizar” permite “representar o real por um ‘signo’ e de compreender o ‘signo’ como representante do real” (BENVENISTE, 2020, p. 37, grifos do autor). Essas experiências se constituem no re-contar e no re-produzir emoções vividas por meio do ato de narrar e, mais do que isso, ao narrar o locutor-criança assume o lugar de eu na enunciação, mobilizando a língua para concretizar esse relato. Diedrich (2020) se apoia em Dessons (2006), para melhor esclarecer o papel do prefixo re nos estudos benvenistianos, o qual assume um duplo valor:
Por um lado, refere a iteração, ou seja, o que acontece novamente; de outro lado, refere a ideia de invenção, de novidade. É com essa potência de sentido que a ideia de representar o mundo deve ser entendida, o que implica assumir uma postura teórico-metodológica frente aos fatos de linguagem que dê conta da relação entre esses dois sentidos implicados no ato de viver e de significar e que acabam por definir o próprio homem. (DIEDRICH, 2020, p. 607).
Com as experiências narrativas no simbólico da linguagem, a criança passa a estabelecer os seus discursos pelo ato de narrar, o que é evocado de modo bastante particular, retratando com as formas da língua sua experiência particular dos acontecimentos e, com ela, os rudimentos da sua cultura.
Partimos do princípio de que o ato de narrar implica determinadas particularidades enunciativas, as quais se estabelecem no discurso a partir de um modo específico, de se narrarem, na prática social, as experiências vividas ou imaginadas em eventos particulares. As especificidades determinantes desse modo de narrar apresentam-se à criança em suas vivências em sociedade, nas quais as formas e os sentidos da língua-discurso colocam em evidência os deslocamentos empreendidos entre a dupla natureza da língua: realidade individual e social. (DIEDRICH, 2020, s.p).
Nos deslocamentos - entendidos por nós como o movimento realizado pelo falante entre língua-sistema e língua-discurso, decorrente da atualização das formas e sentidos que ocorre na relação com o outro -, revelados no ato de narrar, a criança evoca suas experiências apropriando-se dos signos que compõem o sistema da língua e evoca-os no discurso seguindo as regras de estrutura da sua língua para que possa produzir enunciados compreensíveis ao interlocutor (tu), estabelecendo a reversibilidade enunciativa proposta por Benveniste, na qual eu pode tornar-se tu e tu pode assumir o papel de eu. Nessa troca, o locutor-criança, ao narrar, não re-produz somente sons da língua, mais do que isso, enuncia através de “complexas formas de expressão”, que consiste em colocar em funcionamento a língua seguindo seus princípios estruturais, produzindo os mais variados sentidos ao realizar essa mobilização da língua-discurso. Conforme Benveniste (2020, p. 32, grifo do autor),
Da base ao topo, desde os sons até as complexas formas de expressão, a língua é um arranjo sistemático de partes. Compõe-se de elementos formais articulados em combinações variáveis, segundo certos princípios de estrutura.
Entendemos que as metáforas são “complexas formas de expressão” evidenciadas pelo locutor no discurso, já que, ao empreender uma relação metafórica no enunciado, faz-se necessário que o locutor produza deslocamentos do sentido de uma palavra de um contexto para outro contexto, estabelecendo essa analogia de sentidos na realização da língua no discurso. Isso desperta na criança com a aquisição da linguagem. A apropriação dos signos linguísticos através da interação com o tu, possibilita a vivência de experiências simbólicas que permitem a compreensão de significados semelhantes em diferentes usos, despertando na criança a possibilidade de estabelecer relações entre os signos pela sua significação na sua cultura e na vida em sociedade. Nas suas narrações, a criança tem a possibilidade de realizar deslocamentos na linguagem e constituir o seu dizer mediante relações metafóricas.
Mas como Benveniste compreende as “transferências analógicas de denominações”? A essa questão dedicamos a próxima seção.
3. Considerações sobre a metáfora4
Benveniste (1989, p. 82) define a enunciação como “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”. Cada falante se apropria da sua ou das suas línguas e, ao mobilizar as formas da língua no ato enunciativo, posicionando-se como eu, o falante torna-se sujeito da enunciação. Assumir a língua e posicionar-se como sujeito que enuncia e significa na sociedade, possibilita que esse eu, ao colocar em funcionamento a língua por um ato individual, estabeleça no seu discurso novos empregos, novos usos da língua. Não usos individuais e novos no sentido de não se fazer compreender; pelo contrário, usos que permitem a compreensão por parte do tu, do interlocutor, para que possa haver a reversibilidade enunciativa.
A partir dessa concepção de enunciação, deslocamos nosso olhar para as “transferências analógicas de denominações”, as metáforas, para Benveniste (2020). Flores (2013) apresenta alguns apontamentos que visam explicar o que seria a metáfora nos estudos benvenistianos. O autor destaca que não é um conceito aprofundado nos estudos desse teórico, há poucas passagens nos textos de Benveniste acerca dessas construções. Uma citação em que o autor de fato menciona o que entende por metáfora é a que se encontra no início deste trabalho e que repetimos aqui: “Institui essas transferências analógicas de denominações que chamamos metáforas, fator tão poderoso do enriquecimento conceptual” (BENVENISTE, 2020, p. 40, grifos nossos). Transferências analógicas constituídas pelo locutor no seu discurso: tal noção de metáfora “não está na dependência de uma visão de sentido que suponha uma literalidade e uma consequente figuração. Ao contrário: trata-se de algo que se produz no instante mesmo em que se fala” (FLORES, 2013, p. 162).
No ato de narrar, na interação com o outro, a criança evoca no seu discurso “transferências analógicas de denominações”: “trata-se de uma metáfora que se constrói no discurso, portanto, dependente do quadro figurativo da enunciação5” (FLORES, 2013, p. 168). Ainda, segundo Flores (2013), é algo que se constitui no instante em que se fala, submete-se ao ato enunciativo. O falante manifesta analogias no seu discurso, as quais se estabelecem no ato de fala, só sendo possível realizar transferências analógicas pelas experiências já constituídas na linguagem. As experiências com a língua em emprego permitem ao locutor estabelecer relações entre os significados, expressando-os em outras situações enunciativas, com uma nova significação.
Ao pensar a metáfora pelo viés dos princípios benvenistianos, relacionamos com o que o autor conceitua como semiótico e semântico, no texto “A forma e o sentido na linguagem” (BENVENISTE, 1989), pois só é possível instituir uma metáfora no discurso relacionando essas duas formas de ser da língua. O semiótico, para o autor, tem como unidade o signo, sendo esse “dotado de significação na comunidade daqueles que fazem uso de uma língua” (BENVENISTE, 1989, p. 227). O signo existe ou não em uma língua, não há signo que exista parcialmente, o qual é classificado como existente ou não, com significação ou não, pelos próprios falantes. “É no uso da língua que um signo tem existência; o que não é usado não é signo; e fora do uso o signo não existe” (BENVENISTE, 1989, p. 227).
A outra maneira de ser da língua é como semântica, sendo a palavra a sua unidade. Essa maneira nos leva a pensar a língua em emprego pelos seus falantes.
A noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação; vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos homens. É a língua como instrumento da descrição e do raciocínio. Somente o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo, e por consequência a normalização do pensamento e do desenvolvimento da consciência (BENVENISTE, 1989, p. 229).
Assim, Benveniste (1989, p. 230) caracteriza a semiótica como “uma propriedade da língua” e a semântica como resultado “de uma atividade do locutor que coloca a língua em ação.” Essas duas formas de ser da língua se implicam no uso: o falante ao enunciar em um ato individual de utilização da língua seleciona signos existentes no sistema linguístico; combina-os sintagmaticamente em forma de palavras; e organiza as palavras de tal maneira que possam produzir sentido na frase. A frase assume o papel de expressar uma ideia em um “aqui” e “agora” da enunciação. O sentido que as palavras exercem na frase está implicado no “aqui” e “agora” da situação enunciativa.
Dessa forma, o locutor, ao expressar sua ideia através da frase, seleciona e combina palavras que significam o pretendido; e, nessa seleção e combinação, o locutor poderá se apropriar de signos com tal significação que, ao expressá-los em forma de palavras organizadas em frases, será possível estabelecer uma relação metafórica entre os elementos que compõem o discurso.
A metáfora, em sua concepção tradicionalmente expressa pelos estudos linguísticos, se estabelece pelo emprego de um signo conotado, o qual mantém relação com o signo denotado. Na concepção enunciativa, a questão assume um outro ponto de vista: o emprego criativo de uma palavra na frase faz com que essa assuma dada significação em determinada situação enunciativa, mantendo certa relação com seu significado anterior. Há relações de sentido entre o emprego de origem e o re-novado, só sendo possível perceber essa relação na realização da frase em determinado enunciado, em determinada situação enunciativa.
As “transferências analógicas de denominações” não são pré-estabelecidas pelo sistema da língua, elas acontecem e são evidenciadas no discurso. “A transferência analógica de designação não se apoia sobre em uma ‘analogia’ consolidada, mas em uma analogia que se dá no discurso” (FLORES, 2013, p. 168, grifos do autor). Se se dá no discurso, se dá no uso da língua pelos falantes, “o locutor produz metáfora ao transferir analogicamente, numa dada situação, sentidos que produzem, no discurso, novas denominações, ou seja, novos usos” (FLORES, 2013, p. 162).
Para finalizar esta seção, destacamos que compreendemos a metáfora como uma transferência analógica de denominação que se estabelece no discurso, no uso da língua, através do emprego de signos que, a partir da significação anterior no sistema da língua, surgem na situação enunciativa com um novo uso, possível pelas relações constituídas nas experiências no simbólico da linguagem, as quais criam possibilidades de estabelecer analogias no ato discursivo.
4. Transferências analógicas de denominações no discurso da criança
O recorte enunciativo6 que ilustra nossa reflexão advém dos estudos de Del Ré (2016) e faz parte do acervo do grupo de pesquisa NALingua. Estamos usando as normas de transcrição assumidas pelo grupo NALingua, mas com alguns ajustes derivados da particularidade do olhar que assumimos neste trabalho. Estão presentes na situação enunciativa o Gu, menino de 5 anos e 10 meses, a mãe do Gu e a pesquisadora/observadora. Na transcrição, GU representa a criança e OBS denomina a pesquisadora-observadora. Gu está colorindo desenhos de trem em uma mesa colocada na sala da casa dele e, enquanto vai colorindo os desenhos com suas canetinhas, surge a seguinte narrativa.
Gu, nesse recorte enunciativo, mobiliza a língua-discurso buscando denominações para nomear as “coisas” do mundo e, ao mesmo tempo, referi-las no seu discurso através de palavras relacionadas na sintagmatização do discurso que expressa a ideia pretendida. Acerca disso, lembramos a seguinte reflexão benvenistiana:
A aquisição da língua é uma experiência que vai a par, na criança, com a formação do símbolo e a construção do objeto. Ela aprende as coisas pelo seu nome; descobre que tudo tem um nome e que aprender os nomes lhe dá a disposição das coisas. Mas descobre também que ela mesma tem um nome e que por meio dele se comunica com os que a cercam. Assim desperta nela a consciência do meio social onde está mergulhada e que moldará pouco a pouco o seu espírito por intermédio da linguagem. (BENVENISTE, 2020, p. 41)
A criança (eu) está conversando com a pesquisadora (tu) enquanto ilustra numa folha de papel o trem Thomas, personagem da série infantil Thomas e seus amigos. Enquanto colore, questiona a interlocutora, “sabe como que fala isso?”, e logo responde “xx de para-brisa dos trens”. O interlocutor logo assume o papel de locutor, evidenciando-se a reversibilidade enunciativa, questionando “aé?” e a criança afirma “é.” “É limpado(r) de para-brisa”. Os deslocamentos enunciativos realizados pela criança para perguntar e afirmar são característicos das funções inter-humanas do discurso, as quais, através de frases assertivas, interrogativas e imperativas, permitem à criança manifestar-se na/pela língua convocando o outro a participar da situação enunciativa, deixando de ser apenas convocada: ela convoca o outro para se enunciar, assim como o outro responde às convocações para que possa se estabelecer a reversibilidade enunciativa.
Logo em seguida dos enunciados destacados, Gu explica por que é um limpador de para-brisa: “pra limpa(r) o # os # o que (es)tá sujo no trilho senão o trem prende ou se xx uma: ## lama e o trem calha daí num [: não] sai mais. Então tem esse limpador de para-brisa pra limpa(r) todas as sujeira(s) que (es)tá no trilho senão é perigoso trava(r) o trem.” A criança constrói uma metáfora ao responder a questão “sabe como que fala isso?” “xx de para-brisa dos trens/ é limpador de para-brisa.” Gu relaciona a significação entre o limpador de para-brisa que há nos carros, nos ônibus, nos caminhões, com a estrutura localizada na parte da frente inferior do trem, a qual colabora para que o trem possa se locomover com mais segurança pelos trilhos. É um acontecimento do mundo que encontra no emprego da língua sua manifestação simbólica. Não se trata de um objeto em si, mas dos empregos de denominação do objeto numa dada língua de uma sociedade em particular. Há uma transferência analógica de denominação entre o limpador de para-brisa do carro e o limpa-trilhos do trem, a qual é estabelecida pela analogia existente entre esses dois elementos: ambos estão na parte da frente, servem para limpar. É nesse uso, nessa relação de significação entre os dois objetos, que é estabelecida a metáfora no discurso da criança.
Pelos dados registrados, é possível identificar que a criança assiste aos desenhos da animação Carros e gosta bastante do personagem McQueen, como ele mesmo diz no recorte. Além de assistir, tem os carros para brincar e, em diversas interações, Gu faz referência a esse personagem nos seus enunciados. Gu, ao referir o personagem do desenho Carros, no seu discurso, convoca o outro a enunciar, a dialogar com ele, a instaurar a intersubjetividade na linguagem. Da mesma forma, o outro utiliza essa referência para convocar o Gu a participar da situação enunciativa. Essas vivências com a manifestação linguística das denominações envolvendo o universo cultural dos carros, o que se dá no simbólico da linguagem, contribuem para os complexos usos da língua e também contribuem para estabelecer relações entre a forma e o sentido dos elementos da língua, sempre atualizados na relação com o outro.
Os deslocamentos enunciativos evidenciados no discurso da criança podem ser compreendidos pelo dispositivo teórico-metodológico proposto por Silva (2009), o qual caracteriza o ato da aquisição da linguagem como (eu-tu/ele)-ELE. Gu (eu) participando da situação enunciativa com a pesquisadora (tu), enunciando através da língua (ele), narra suas experiências com as formas e os sentidos da língua, no simbólico da linguagem; experiências essas constituídas na cultura em que a criança se encontra inserida (ELE) e que se marca na língua como um todo.
A criança, ao estabelecer a relação metafórica no seu discurso, mobiliza o semiótico e o semântico da língua. Gu seleciona no sistema da língua signos que existem, sendo assim, conhecidos e reconhecidos pelos demais falantes dessa língua. Esse signo é sintagmatizado em forma de palavra na frase, combinando com as demais formas que compõem a frase. Quando enuncia essa sintagmatização no seu discurso, em determinada situação enunciativa, a forma adquire um sentido que se estabelece a partir do “aqui” e “agora” da enunciação. Por mais que elementos da narração sejam idênticos a um enunciado anterior, que a forma “limpador de para-brisa” seja idêntica a uma já dita em outra situação enunciativa, que seja o re-conto, a re-apresentação de alguma experiência, sempre será diferente, será nova, porque a enunciação é sempre nova, distinta de algo repetível.
No caso do “limpador de para-brisa dos trens”, percebemos que a criança estabelece relações entre o limpador de para-brisa que há no carro, o qual é responsável pela limpeza do para-brisa para que o motorista possa enxergar a estrada e o trânsito e o carro se mover com mais segurança, com a estrutura na parte inferior da frente do trem, que para ele, como diz “me(s)mo assim que ninguém me fala nada de trem # eu entendo, é uma peça que auxilia e garante que o trem possa se locomover sem ficar ‘preso’ as sujeiras dos trilhos”. É nessa relação de sentidos entre dois elementos distintos estabelecida no discurso de Gu que é evidenciada uma “transferência analógica de denominação”, um nome caracterizado por outro nome devido à semelhança de significação. O locutor transfere a significação de um nome existente na língua-discurso e que serve para caracterizar determinada “coisa” do mundo para outro nome pela semelhança que estabelece entre eles, pela semelhança que só é possível estabelecer pelas experiências no simbólico da linguagem. A “transferência analógica de denominação” não é algo dado pela língua, não é algo pronto; é um novo uso, uma nova denominação que só é possível no discurso, na língua em uso.
5. Considerações finais
No decorrer do artigo, acreditamos que fomos respondendo a questão que propomos no início desta reflexão: “Qual o papel das relações enunciativas no estabelecimento das “transferências analógicas de denominações”, as metáforas, mobilizadas nas narrativas da criança?” Em síntese, poderíamos dizer que é a vivência das relações enunciativas que permite à criança o estabelecimento das “transferências analógicas de denominações”, o que se dá do seguinte modo:
1º-É pela analogia de sentido das formas da língua que se estabelecem as “transferências analógicas de denominações.” No dado analisado, ilustramos essas relações: a criança constitui no seu discurso uma analogia entre o limpador de para-brisa do carro e o limpa-trilhos do trem, pois esses signos possuem uma significação semelhante no sistema da língua, o que possibilita que haja um novo uso dessas formas da língua no discurso.
2º - Trata-se de transferência analógica de DENOMINAÇÃO porque, como Benveniste cita no texto “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística” (2020), a criança apreende que tudo tem um nome e que esse nome lhe dará à disposição das coisas. No dado que analisamos, Gu, a criança em questão, busca uma denominação para que possa referir a “coisa” no seu discurso, em sua relação com o outro.
3º- O locutor-criança se apropria de uma expressão consagrada da língua e, na sintagmatização do discurso, ao lado da palavra “trem”, há atualização da forma e do sentido desta expressão, no “aqui” e “agora” da enunciação e na relação intersubjetiva com o tu.
Acreditamos que a análise contribui para os estudos aquisicionais enunciativos, à medida que, considerando o dispositivo teórico-metodológico proposto por Silva (2009), as “transferências analógicas de denominações” se estabelecem em uma situação enunciativa em que a criança (eu), na relação intersubjetiva com o outro de seu convívio (tu), ao mobilizar a língua (ele) e a sua cultura (ELE), estabelece analogia entre o sentido das formas da língua. As relações metafóricas são possíveis de serem empreendidas no enunciado através das experiências no simbólico da linguagem, as quais são constituídas na relação da criança com o tu, ele e ELE. Isso nos faz pensar no papel da relação da criança com o tu na aquisição da língua (ele) e da cultura (ELE). Ao mobilizar a sua língua, a criança realiza deslocamentos na linguagem e institui novas denominações, novos usos que podem ser compreendidos pelo tu, possibilitando a reversibilidade enunciativa, no seu discurso.
As “transferências analógicas de denominações” são estabelecidas pelo locutor através das experiências no mundo simbólico da linguagem, as quais são constituídas na mobilização das formas da língua pelo falante, na língua em uso, em um determinado “aqui” e “agora”, em diálogo com um tu, pela analogia de sentido com que se configuram. Apesar de não termos feito uma análise diacrônica da linguagem da criança, para atestar mudanças, percebemos que é possível, por meio dos deslocamentos analisados, contribuir para explicar, ao menos parcialmente, o fenômeno da aquisição no universo da língua em emprego. Tais deslocamentos envolvem mudanças sutis no modo como a criança mobiliza formas e sentidos da língua no discurso, apontando para a experiência de significação caraterística da aquisição da linguagem.
Informações Complementares
Conflito de interesse
A autora não tem conflitos de interesse a declarar.
Declaração de disponibilidade de dados
Os dados que suportam os resultados deste estudo serão disponibilizados pelo autor correspondente, mediante solicitação razoável.
Referências
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BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. Trad. de Eduardo Guimarães et al. Campinas, SP: Pontes, 1989.
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Avaliação
DOI: 10.25189/2675-4916.2022.V3.N1.ID619.R
Valdir Flores
Avaliador 1; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil
Luiza Milano
Avaliadora 2; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil
RODADA 1
Avaliador 1
2022-01-02 | 01:10
O texto apresentado para exame é bastante interessante tanto do ponto de vista da temática escolhida quanto do viés teórico-metodológico assumido. Há poucos estudos no Brasil que visam à abordagem da metáfora no quadro da teoria enunciativa de Benveniste. Há menos ainda trabalhos que, dessa perspectiva, proponham-se a analisar a linguagem infantil. Somente por essa intenção o texto já mereceria maior divulgação junto à comunidade científica.
Mas há mais: o texto é muito bem escrito, podem receber ainda apenas uma revisão final para o caso de ser feita alguma adequação textual; o texto tem sólido embasamento teórico-metodológico, fazendo adequada revisão teórica, inclusive acerca do tema estudado (apesar da escassez de material sobre o tema no Brasil).
Com o objetivo de auxiliar a ampliar a já evidente qualidade do texto, faz-se a seguir algumas sugestões.
O texto explicita textualmente em seu resumo que objetiva “descrever como se estabelecem as “transferências analógicas de denominações” nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem”, o que é reiterado no final da Introdução do artigo. No entanto, para que o objetivo fique absolutamente claro ao leitor que não é proficiente no quadro teórico-metodológico benvenistiano (de onde advém a conceituação de metáfora como “transferências analógicas de denominações”), sugere-se que seja introduzida alguma paráfrase que clareie o que se quer dizer exatamente com “como se estabelecem”. Um vez que o artigo pretende estudar esse “como se estabelecem”, sugere-se que tal formulação seja bem esclarecida ao leitor.
Ainda na Introdução, sugere-se que a formulação “surge-nos a curiosidade de investigar as ‘transferências analógicas de denominações’ constituídas no discurso das crianças através do uso de metáforas, construções estabelecidas pelos falantes de maneira particular no ato enunciativo, com a intenção de manter um diálogo com o tu - o outro da enunciação - na cena enunciativa.” seja revista, em função de poder, ocasionalmente conduzir a uma leitura redundante. Sugerimos a seguinte redação para o trecho: “surge-nos a curiosidade de investigar as ‘transferências analógicas de denominações’ constituídas no discurso das crianças, construções estabelecidas pelos falantes de maneira particular no ato enunciativo, com a intenção de manter um diálogo com o tu - o outro da enunciação - na cena enunciativa.” Ora, se a definição de metáfora mobilizada é “transferência analógica de denominação”, não caber investigar essas “transferências” “através do usos de metáforas”, uma vez que as “transferências” são as metáforas.
Ainda a título de maior esclarecimento, sugerimos que fique mais bem explicitado o que a autora entende por “como” na questão norteadora “Como se estabelecem as ‘transferências analógicas de denominações’ nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem?”
Por fim, sugere-se que no “Resumo” e na “Introdução” do artigo esteja informado que os dados a serem estudados são do tipo “narrativa”. Na verdade, infere-se isso na medida em que a autora explica que seu trabalho é parte de um projeto maior que busca estudar narrativas. Mas em nenhum momento é dito claramente no objetivo e na questão norteadora que a autora estudará, neste artigo, as metáfora enunciativas em narrativas infantis. Como isso figura no título do artigo, sugere-se sua clara inclusão.
Sobre o item 4 – Considerações sobre a metáfora – cabe considerar um aspecto: o item apresenta três visões de metáfora (Clássica, Hjelmslev e Jakobson) antes de explicitar a que mais se aproxima do objetivo do texto. Como não é feita nenhuma contraposição/ comparação entre essas três primeira abordagens, nem é apresentado critério que justifique sua inclusão, sugere-se que sejam retiradas em favor de um maior aprofundamento das consequências oriundas da quarta visão de metáfora, a que se coaduna com o tema do artigo.
Por fim, sugere-se que na Conclusão do artigo seja acrescentado um ou dois parágrafos que explicite a contribuição que a análise apresentada traz para os estudos aquisicionais enunciativos.
É o parecer.
Avaliadora 2
2021-12-27 | 10:05
O artigo “CONSTRUÇÕES METAFÓRICAS NA NARRATIVA DA CRIANÇA: O CASO DO LIMPADOR DE PARA-BRISA DOS TRENS” apresenta um título adequado e bastante original. O resumo é sucinto, claro, objetivo e compreensível. Igualmente a introdução está adequada (recomendo, logo a seguir, a inserção de duas fontes bibliográficas que, após ajuste, sugiro serem apontadas no texto e, portanto, também na introdução).
Metodologicamente, o artigo está bem respaldado, apresentando dados oriundos do acervo do grupo de pesquisa NAlingua, e adequadamente adaptados à análise interpretativa proposta pela autora. Os achados apontados são significativos e estão bem amparados na bibliografia mobilizada (novamente, destaco a indicação bibliográfica complementar que sugiro a seguir).
Destaco que o tema é absolutamente pertinente para os estudos da área e visivelmente atende às exigências de um artigo acadêmico. A bibliografia utilizada, em sua maioria, está em sintonia com as produções da área, tanto no que diz respeito a fontes basilares como em relação às pesquisas e publicações mais recentes. Neste quesito, no entanto, senti falta de duas referências que podem contribuir muito para a reflexão da autora, especialmente na seção 4:
- A primeira, um clássico do campo:
DE LEMOS, Claudia T. G. Os processos metafóricos e metonímicos como mecanismos de mudança. Substratum: temas fundamentais em Psicologia e Educação 1 (3), 151-72, 1998.
- A segunda, uma indicação que certamente auxiliará na organização da reflexão da autora, principalmente em relação ao conceito de metáfora (na tradição grega, nas bases da linguística saussuriana e na proposta jakobsoniana):
SILVA, Flávia Santos da. Da metáfora: a inovação analógica na linguagem. RevLet – Revista Virtual de Letras, v. 08, nº 01, jan/jul 2016.
Quanto ao título das seções 2 e 3, recomendo detalhamento/complemento. Tal como estão postos, os títulos são muito genéricos e não representam o recorte do tema proposto pela autora na respectivas seções.
A seguir, aponto algumas sugestões pontuais para ajuste, com objetivo de clarear textualmente algumas passagens do artigo:
- Nas páginas 3-4, onde se lê “quando a criança não reproduz nenhum som identificável como constituinte da sua língua materna”, sugiro reformulação. Afinal, salvo em casos clínicos graves, creio que não se possa dizer que a criança não reproduza nenhum som identificável como pertencente a sua língua materna;
- Na página 4, sugiro rever a expressão “no simbólico da linguagem”. Me pergunto se a linguagem não é sempre da ordem do simbólico... Essa expressão inclusive é recorrente no artigo. Sugiro rever a pertinência de seu uso no decorrer do texto;
- Na página 4, em “Nessa interação entre o eu e o tu”, não está clara a referência acerca de qual interação se trata. Sugiro que seja apontada;
- Na página 4, na passagem “Quando nos referimos a experiências, pensamos naquelas do mundo simbólico e não do mundo físico”, sugiro que seja reavaliada a ressalva “e não do mundo físico”. Afinal, quando se trata de estudo de aquisição de primeira língua, talvez não se deva descartar as experiências relativas às atividades sensório-motoras e pré-operatórias (PIAGET, 1966/1987) de forma tão incisiva. Obviamente, um estudo linguístico da fala da criança prioriza sempre o aspecto simbólico das manifestações do infante; no entanto, isso não significa que as experimentações e vivências, justamente por serem ligadas ao contexto cultural e social em que essa criança está inserida, devam ser minimizadas;
- Nas páginas 4-5 há um apontamento de referência teórica a Dessons, mas a citação apresentada é de Diedrich;
- Na página 7, onde se lê “permitem a compreensão do tu” sugiro substituir por “permitem a compreensão por parte do tu”;
- Na página 13, onde se lê “No decorrer do trabalho”, sugiro substituir trabalho por artigo ou texto;
- Sugiro uma releitura detalhada com a finalidade de ajustar lapsos de digitação que repercutem em formatação não adequada às regras da ABNT.
Finalmente, destaco que o conteúdo do artigo está bem respaldado teoricamente, buscando autores de referência no campo e contrastando com dados de estudos recentes. A apresentação das análises e discussão das mesmas é feita de forma clara e detalhada. Há visível repercussão dos achados do estudo para as áreas da aquisição da linguagem, dos estudos sobre metáfora e para o campo da linguística da enunciação.
Assim sendo, levando em consideração os ajustes sugeridos, recomendo a publicação do artigo.
RODADA 2
Avaliador 1
2022-01-21 | 04:17
A autora do texto atendeu todas as solictações feitas por ocasião do parecer. Recomendo a publicação e cumprimento a autora.
Avaliadora 2
2022-01-24 | 11:13
Recomendação: Aceitar
Resposta dos Autores
DOI: 10.25189/2675-4916.2022.V3.N1.ID619.A
RODADA 1
2022-01-18
AVALIADORA LUIZA MILANO
Agradecemos pelas observações e sugestões.
Respostas aos ajustes sugeridos:
Sugestão:
● Destaco que o tema é absolutamente pertinente para os estudos da área e visivelmente atende às exigências de um artigo acadêmico. A bibliografia utilizada, em sua maioria, está em sintonia com as produções da área, tanto no que diz respeito a fontes basilares como em relação às pesquisas e publicações mais recentes. Neste quesito, no entanto, senti falta de duas referências que podem contribuir muito para a reflexão da autora, especialmente na seção 4:
- A primeira, um clássico do campo:
DE LEMOS, Claudia T. G. Os processos metafóricos e metonímicos como mecanismos de mudança. Substratum: temas fundamentais em Psicologia e Educação 1 (3), 151-72, 1998.
- A segunda, uma indicação que certamente auxiliará na organização da reflexão da autora, principalmente em relação ao conceito de metáfora (na tradição grega, nas bases da linguística saussuriana e na proposta jakobsoniana):
SILVA, Flávia Santos da. Da metáfora: a inovação analógica na linguagem. RevLet – Revista Virtual de Letras, v. 08, nº 01, jan/jul 2016.
Resposta (p. 7):
Procuramos contemplar os dois pareceres. Retiramos as considerações sobre a metáfora do corpo do texto e as acrescentamos na nota de rodapé número 5.
Apresentamos nesta seção como Benveniste (2020) entende a metáfora. Para além do autor que baseia este artigo, destacamos que na Retórica Clássica, segundo Fiorin (2008, p. 71), “a metáfora e a metonímia eram consideradas figuras de palavras. Eram entendidas como duas maneiras de criar novos sentidos”. O linguista russo Roman Jakobson defende a ideia de que a metáfora e a metonímia se estabelecem a partir das relações de similaridade e contiguidade. “A metáfora (ou a metonímia) é a vinculação de um significante a um significado secundário, associado por semelhança (ou por contiguidade) com o significado primário” (JAKOBSON, 2007, p. 112). De Lemos (1998) usa os processos metafóricos e metonímicos para explicar os deslocamentos da criança na aquisição da linguagem, o que o faz em contraposição com a ideia de desenvolvimento. Silva (2016) procura dar conta da metáfora em Benveniste como analogia, mas numa relação de continuidade a Saussure.
Sugestão:
● Quanto ao título das seções 2 e 3, recomendo detalhamento/complemento. Tal como estão postos, os títulos são muito genéricos e não representam o recorte do tema proposto pela autora nas respectivas seções.
Resposta:
2. A aquisição de linguagem a partir da perspectiva enunciativa benvenistiana (p. 3)
3. A experiência narrativa como ato de enunciação (p. 4)
Sugestão:
● Nas páginas 3-4, onde se lê “quando a criança não reproduz nenhum som identificável como constituinte da sua língua materna”, sugiro reformulação. Afinal, salvo em casos clínicos graves, creio que não se possa dizer que a criança não reproduza nenhum som identificável como pertencente a sua língua materna;
Resposta (p. 4):
O despertar dessa faculdade implica a interação com os outros de seu convívio. Desde o nascimento, quando a criança ensaia suas primeiras palavras, o adulto assume o papel de “traduzir” os balbucios para enunciados existentes na língua, possibilitando então que essa criança signifique no simbólico da linguagem. Na interação entre o eu e o tu em situações enunciativas, a criança apropria-se da sua língua materna e passa a estabelecer relações simbólicas com os que a rodeiam.
Sugestão
● Na página 4, sugiro rever a expressão “no simbólico da linguagem”. Me pergunto se a linguagem não é sempre da ordem do simbólico... Essa expressão inclusive é recorrente no artigo. Sugiro rever a pertinência de seu uso no decorrer do texto;
Resposta (p. 5):
Acrescentada a nota de rodapé 4:
Para Benveniste (2020, p. 40), a capacidade simbólica da linguagem é a “capacidade mais específica do ser humano”. “Essa capacidade representativa de essência simbólica que está na base das funções conceptuais só aparece no homem. Desperta muito cedo na criança, antes da linguagem, na aurora da sua vida consciente” (BENVENISTE, 2020, p. 37). “A aquisição da língua é uma experiência que vai a par, na criança, com a formação do símbolo e a construção do objeto” (BENVENISTE, 2020, p. 41).
Sugestão:
● Na página 4, em “Nessa interação entre o eu e o tu”, não está clara a referência acerca de qual interação se trata. Sugiro que seja apontada;
Resposta (p. 4):
Na interação entre o eu e o tu em situações enunciativas, a criança apropria-se da sua língua materna e passa a estabelecer relações simbólicas com os que a rodeiam.
Sugestão:
● Na página 4, na passagem “Quando nos referimos a experiências, pensamos naquelas do mundo simbólico e não do mundo físico”, sugiro que seja reavaliada a ressalva “e não do mundo físico”. Afinal, quando se trata de estudo de aquisição de primeira língua, talvez não se deva descartar as experiências relativas às atividades sensório-motoras e pré-operatórias (PIAGET, 1966/1987) de forma tão incisiva. Obviamente, um estudo linguístico da fala da criança prioriza sempre o aspecto simbólico das manifestações do infante; no entanto, isso não significa que as experimentações e vivências, justamente por serem ligadas ao contexto cultural e social em que essa criança está inserida, devam ser minimizadas;
Resposta (p. 5):
Considerando que a linguagem é sempre simbólica, Benveniste (2020) nos move a assumir um determinado olhar para a aquisição, dando destaque ao que esta capacidade representa na constituição da criança falante. Quando nos referimos a experiências, pensamos naquelas do mundo simbólico e não do mundo físico, pensamos nas experiências de significação no simbólico da linguagem que se marcam na língua-discurso, uma vez que “a linguagem reproduz o mundo, mas submetendo-o à sua própria organização” (BENVENISTE, 2020, p.36), pois a faculdade de “simbolizar” permite “representar o real por um ‘signo’ e de compreender o ‘signo’ como representante do real” (BENVENISTE, 2020, p. 37, grifos do autor). Essas experiências se constituem no re-contar e no re-produzir emoções vividas por meio do ato de narrar e, mais do que isso, ao narrar o locutor-criança assume o lugar de eu na enunciação, mobilizando a língua para concretizar esse relato.
Sugestão:
● Nas páginas 4-5 há um apontamento de referência teórica a Dessons, mas a citação apresentada é de Diedrich;
Resposta (p. 5):
Diedrich (2020) se apoia em Dessons (2006), para melhor esclarecer o papel do prefixo re nos estudos benvenistianos, o qual assume um duplo valor:
Por um lado, refere a iteração, ou seja, o que acontece novamente; de outro lado, refere a ideia de invenção, de novidade. É com essa potência de sentido que a ideia de representar o mundo deve ser entendida, o que implica assumir uma postura teórico-metodológica frente aos fatos de linguagem que dê conta da relação entre esses dois sentidos implicados no ato de viver e de significar e que acabam por definir o próprio homem. (DIEDRICH, 2020, p. 607).
Sugestão:
● Na página 7, onde se lê “permitem a compreensão do tu” sugiro substituir por “permitem a compreensão por parte do tu”;
Resposta (p. 8):
Alteração feita.
Não usos individuais e novos no sentido de não se fazer compreender; pelo contrário, usos que permitem a compreensão por parte do tu, do interlocutor, para que possa haver a reversibilidade enunciativa.
Sugestão:
● Na página 13, onde se lê “No decorrer do trabalho”, sugiro substituir trabalho por artigo ou texto;
Resposta (p. 14):
Foi substituído trabalho por artigo.
No decorrer do artigo, acreditamos que fomos respondendo a questão que propomos no início desta reflexão: “Como se estabelecem as transferências analógicas de denominações nos deslocamentos realizados pela criança no seu discurso?”.
Sugestão:
● Sugiro uma releitura detalhada com a finalidade de ajustar lapsos de digitação que repercutem em formatação não adequada às regras da ABNT.
Resposta:
O artigo foi revisado e foram realizados ajustes nas regras da ABNT.
AVALIADOR VALDIR FLORES
Gratidão pelas colocações e apontamentos.
Respostas aos ajustes sugeridos:
Sugestão:
● O texto explicita textualmente em seu resumo que objetiva “descrever como se estabelecem as “transferências analógicas de denominações” nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem”, o que é reiterado no final da Introdução do artigo. No entanto, para que o objetivo fique absolutamente claro ao leitor que não é proficiente no quadro teórico-metodológico benvenistiano (de onde advém a conceituação de metáfora como “transferências analógicas de denominações”), sugere-se que seja introduzida alguma paráfrase que clareie o que se quer dizer exatamente com “como se estabelecem”. Um vez que o artigo pretende estudar esse “como se estabelecem”, sugere-se que tal formulação seja bem esclarecida ao leitor.
Resposta (p. 3):
Nosso objetivo é descrever como se estabelecem as “transferências analógicas de denominações”, as metáforas, nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem. Por isso, inicialmente gostaríamos de pontuar algumas perspectivas que nos ajudam a entender a aquisição da linguagem.
Sugestão:
● Ainda na Introdução, sugere-se que a formulação “surge-nos a curiosidade de investigar as ‘transferências analógicas de denominações’ constituídas no discurso das crianças através do uso de metáforas, construções estabelecidas pelos falantes de maneira particular no ato enunciativo, com a intenção de manter um diálogo com o tu - o outro da enunciação - na cena enunciativa.” seja revista, em função de poder, ocasionalmente conduzir a uma leitura redundante. Sugerimos a seguinte redação para o trecho: “surge-nos a curiosidade de investigar as ‘transferências analógicas de denominações’ constituídas no discurso das crianças, construções estabelecidas pelos falantes de maneira particular no ato enunciativo, com a intenção de manter um diálogo com o tu - o outro da enunciação - na cena enunciativa.” Ora, se a definição de metáfora mobilizada é “transferência analógica de denominação”, não cabe investigar essas “transferências” “através do usos de metáforas”, uma vez que as “transferências” são as metáforas.
Resposta (p. 2):
Alteração feita.
Ao analisar dados de crianças com o objetivo de observar os deslocamentos simbólicos evocados nas suas narrativas na aquisição da linguagem no projeto de pesquisa “A narrativa da criança no contexto da pandemia de Covid-19: deslocamentos no simbólico da linguagem”, surge-nos a curiosidade de investigar as “transferências analógicas de denominações” constituídas no discurso das crianças. Construções estabelecidas pelos falantes de maneira particular no ato enunciativo, com a intenção de manter um diálogo com o tu - o outro da enunciação - na cena enunciativa.
Sugestão:
● Ainda a título de maior esclarecimento, sugerimos que fique mais bem explicitado o que a autora entende por “como” na questão norteadora “Como se estabelecem as ‘transferências analógicas de denominações’ nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem?”
Resposta (p. 2):
Alteramos a nossa questão norteadora:
Qual o papel das relações enunciativas no estabelecimento das “transferências analógicas de denominações”, as metáforas, mobilizadas nas narrativas da criança?
Sugestão:
● Por fim, sugere-se que no “Resumo” e na “Introdução” do artigo esteja informado que os dados a serem estudados são do tipo “narrativa”. Na verdade, infere-se isso na medida em que a autora explica que seu trabalho é parte de um projeto maior que busca estudar narrativas. Mas em nenhum momento é dito claramente no objetivo e na questão norteadora que a autora estudará, neste artigo, as metáfora enunciativas em narrativas infantis. Como isso figura no título do artigo, sugere-se sua clara inclusão.
Resposta:
No resumo: Neste trabalho, busca-se descrever como se estabelecem as metáforas, concebidas como “transferências analógicas de denominações” (BENVENISTE, 2020), nos deslocamentos realizados pela criança na linguagem, mais especificamente, no ato enunciativo de narrar. O viés teórico-metodológico pauta-se na perspectiva enunciativa aquisicional (SILVA, 2009), a qual se baseia em princípios benvenistianos. Neste artigo, ilustra-se o tema com um dado em que há a narrativa de uma criança de 5 anos. (p. 1)
Na introdução: Buscando resposta para esta questão, apresentamos, no decorrer do trabalho, um dado em que há a narrativa de uma criança de 5 anos, caracterizado pela presença, no discurso, de relação metafórica. (p. 2)
Sugestão:
● Sobre o item 4 – Considerações sobre a metáfora – cabe considerar um aspecto: o item apresenta três visões de metáfora (Clássica, Hjelmslev e Jakobson) antes de explicitar a que mais se aproxima do objetivo do texto. Como não é feita nenhuma contraposição/ comparação entre essas três primeiras abordagens, nem é apresentado critério que justifique sua inclusão, sugere-se que sejam retiradas em favor de um maior aprofundamento das consequências oriundas da quarta visão de metáfora, a que se coaduna com o tema do artigo.
Resposta (p. 7):
Procuramos contemplar os dois pareceres. Retiramos as considerações sobre a metáfora do corpo do texto e as acrescentamos na nota de rodapé número 5.
Apresentamos nesta seção como Benveniste (2020) entende a metáfora. Para além do autor que baseia este artigo, destacamos que na Retórica Clássica, segundo Fiorin (2008, p. 71), “a metáfora e a metonímia eram consideradas figuras de palavras. Eram entendidas como duas maneiras de criar novos sentidos”. O linguista russo Roman Jakobson defende a ideia de que a metáfora e a metonímia se estabelecem a partir das relações de similaridade e contiguidade. “A metáfora (ou a metonímia) é a vinculação de um significante a um significado secundário, associado por semelhança (ou por contiguidade) com o significado primário” (JAKOBSON, 2007, p. 112). De Lemos (1998) usa os processos metafóricos e metonímicos para explicar os deslocamentos da criança na aquisição da linguagem, o que o faz em contraposição com a ideia de desenvolvimento. Silva (2016) procura dar conta da metáfora em Benveniste como analogia, mas numa relação de continuidade a Saussure.
Sugestão:
● Por fim, sugere-se que na Conclusão do artigo seja acrescentado um ou dois parágrafos que explicite a contribuição que a análise apresentada traz para os estudos aquisicionais enunciativos.
Resposta (p. 14):
Acreditamos que a análise contribui para os estudos aquisicionais enunciativos, à medida que, considerando o dispositivo teórico-metodológico proposto por Silva (2009), as “transferências analógicas de denominações” se estabelecem em uma situação enunciativa em que a criança (eu), na relação intersubjetiva com o outro de seu convívio (tu), ao mobilizar a língua (ele) e a sua cultura (ELE), estabelece analogia entre o sentido das formas da língua. As relações metafóricas são possíveis de serem empreendidas no enunciado através das experiências no simbólico da linguagem, as quais são constituídas na relação da criança com o tu, ele e ELE. Isso nos faz pensar no papel da relação da criança com o tu na aquisição da língua (ele) e da cultura (ELE). Ao mobilizar a sua língua, a criança realiza deslocamentos na linguagem e institui novas denominações, novos usos que podem ser compreendidos pelo tu, possibilitando a reversibilidade enunciativa, no seu discurso.