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Research Report

The Apurinã Kusanaty: Diplomats and Guardians of the Planet

Francisco Apurinã

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https://orcid.org/0000-0002-6221-5571


Keywords

Kymyrury
Apurinã
Anthropology
Knowledge
Kusanaty

Abstract

This text analyzes the importance of territories, especially those territories sacred to the Apurinã people, the dichotomy between nature and culture, the asymmetrical relationships between humans and non-humans, as well as the mismatch between indigenous knowledge and Western knowledge. Secondary sources were consulted and a qualified listening was carried out by the author with his Apurinã interlocutors, which resulted in the configuration of different worlds, ecosystems and their guardian and controlling agencies under the prism of the knowledge of the Kusanaty being, since they travel to other worlds in different forms or guises, as they have multiple capacities. In this context, the kymyrury appear as dwellings of spiritual agencies, which feed and nourish our bodies, minds and spirits. In this way, we understand that, for each of these spaces, there are controlling owners or guardians who protect their homes and other residents. When these places are threatened, invaded or destroyed, they immediately react against anthropic actions through events that have come to be known as climate change, global warming and the Anthropocene.

Resumo para não especialistas

Este texto analisa a importância dos territórios, sobretudo aqueles territórios sagrados para o povo Apurinã. Aborda também a dicotomia entre natureza e cultura, as relações assimétricas entre humanos e não-humanos, e o desencontro entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos ocidentais. A metodologia empregada envolve a consulta a fontes secundárias e uma escuta atenta e qualificada do autor para com seus interlocutores Apurinã. O resultado dessa pesquisa foi o entendimento da configuração de diferentes mundos, ecossistemas e suas agências guardiãs e controladoras sob o prisma do conhecimento do ser Kusanaty Apurinã. Nesse contexto, os kymyrury ou lugares sagrados surgem como habitações de agências espirituais, que alimentam e nutrem nossos corpos, mentes e espíritos. Nosso entendimento apresentado nesse texto é que para cada um desses espaços, existem donos ou guardiões controladores que protegem suas habitações e demais residentes. Quando esses lugares são ameaçados, invadidos ou destruídos, imediatamente eles reagem contra ações antrópicas por meio de eventos que passaram a ser conhecidos como mudanças climáticas, aquecimento global e antropoceno.

Introdução

Antes de adentrar no cerne da discussão que busca alcançar este texto, é importante ressaltar que as reflexões aqui alinhavadas, são à primeira vista, uma construção conjunta e participativa, fruto de uma relação e parceria entre este autor e seu pai Katãury[1]. Entretanto, o texto não circunscreve apenas o pensamento desses dois autores, ao contrário disso, teremos a efetiva contribuição de sábios e sábias também do povo Apurinã. Além desses, a retórica do texto ganhará mais sofisticação com as contribuições teóricas e ensinamentos de autores indígenas e não-indígenas, os quais nos conduzirão por dois caminhos de conhecimentos: o conhecimento indígena e o ocidental dominante.

A antropologia tem como um de seus principais objetos de estudo os povos indígenas, cuja diferentes sociedades são tidas como parâmetros de investigação e análise dessa ciência, que possui como ponto fundante a ideia de natureza e cultura a partir de uma concepção ocidental usada para situar o homem em relação com o meio em que vive, de modo que o homem aqui não circunscreve apenas a figura masculina, mas sim, o conceito de humanidade pelo qual descreve seu comportamento e cotidiano em relação aos seus hábitos, que são introjetados desde seu nascimento.

De acordo com o indígena antropólogo (SARMENTO, 2018) do povo indígena Tukano, a antropologia contemporânea carrega a noção de natureza/cultura como metodologia de investigação reflexiva ou como forma de análise dos limites da cultura, enxergando nas sociedades não-ocidentais o lugar em que essa fronteira pode ser percebida. Isso porque, nessas sociedades, as pesquisas antropológicas não teriam encontrado a concepção dualística de natureza e cultura, mas, sim, uma diversidade de variações, nas quais as duas coisas estariam em continuidade, integradas ou em relação.

O antropólogo francês Philippe Descola em seu livro: Outras naturezas, outras culturas, tenta explicar sobre a diferença de natureza e cultura. Segundo ele:

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É natureza tudo aquilo que se produz sem a ação humana, ou seja, o que existiu antes do homem e que existirá depois dele, como os oceanos, as montanhas, a atmosfera e as florestas. Por outro lado, é cultura tudo aquilo que é produzido pela ação humana, sejam objetos, ideias, ferramentas, cidades, artigos de lei e obras de arte (DESCOLA, 2016, p.7).

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Notemos que o assunto que coloca em relevo a dicotomia entre natureza e cultura automaticamente abre precedente para que também seja analisada a relação assimétrica entre humanos e não-humanos, assim como o desencontro entre o conhecimento indígena e o conhecimento dominante ocidental. Sabemos que esses assuntos são pesquisados e debatidos de maneira substancial por diferentes autores, incluindo aqueles expoentes da antropologia e de outras redes de pesquisa, fato que coloca esta e outras abordagens no patamar de ampla visibilidade, aumentando assim, nossa responsabilidade de refleti-las e discuti-las.

Nesse sentido, certamente não sou a pessoa mais indicada ou mais preparada para falar sobre os Kusanaty[1] (pajé), kaximẽka (xamanismo) e kymyrury[2] (lugares sagrados), tampouco de suas ontologias, conhecimentos, agências espirituais e habitantes – assuntos que serão abordados no decorrer deste texto – sobretudo em razão do raso conhecimento que tenho e da necessidade de um mergulho mais aprofundado sobre eles. Por essa razão, sugiro, antes de qualquer proposta, um texto incipiente, modesto, porém reflexivo e digno de complementações.

1. Diplomacia cósmica dos Kusanaty sobre os territórios Apurinã

Para nós Apurinã, é impossível pensar ou falar de qualquer assunto que esteja dissociado de nossos territórios. Esses lugares, que foram de nossos ancestrais, que atualmente são nossos e que futuramente serão das gerações vindouras, recebem nosso sentimento que está atrelado a uma relação de pertencimento – não como donos, mas como filhos – por isso, não os enxergamos por uma ótica capitalista ou consumista, pelo contrário, nós, nossos territórios e os seres que neles habitam comungamos de uma relação de interdependência, conforme ensina Katãury:

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Nós, Apurinã, estamos na terra desde o começo do mundo, como meu pai me contou, como meu avô contou para ele, como meu bisavô contou para meu avô [...]. Tsura, nosso criador, deu vida aos diferentes seres que existem na natureza: aqueles que vivem na terra, aqueles que vivem na água, aqueles que vivem no ar e ainda aqueles que moram no céu, no mundo dos encantados e no mundo debaixo da terra. Desde então, aprendemos a cuidar das coisas que ele deixou desde o primeiro dia, retirando da natureza somente o necessário como ele nos ensinou; respeitando sua criação, porque até os animais falam conosco e merecem respeito. Muitos desses animais são nossos próprios parentes. Tsura também deu para os Apurinã o conhecimento que permite saber quando eles são animais que podemos matar para comer, e quando nós devemos respeitar como nosso parente. Por isso tudo que faz mal a natureza, também faz mal aos ensinamentos de Tsura (Katãury, Aldeia Camicuã, agosto de 2018).

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O depoimento de Katãury, acima, nos ensina que os Apurinã mantêm relações com diversos seres da natureza, seja humanos e não-humanos, de modo que esses últimos ocupam diferentes espaços, organizando-se em coletivos, assim como as sociedades humanas.

Partindo dessa perspectiva, visando melhor compreensão sobre a forma Apurinã de pensar, enxergar e estar no mundo, é oportuno iniciarmos pela composição de distintas dimensões que simultaneamente dialogam entre si de maneira harmônica – pelos menos, era para ser assim – compreendendo a existência de três mundos: ikyra thyxi (mundo de cima), ywa thyxi (este mundo) e ywa ypatape thixi (mundo de baixo), respectivamente, céu, terra e subterrâneo.

Sendo assim, entendemos que o céu (mundo de cima), é constituído por seres celestes, Pumatukatxi, Tsura[1], Mixikanu, Kãnhỹnhary e alguns Kusanaty; a terra (mundo do meio), é composta por humanos e não-humanos, entre eles, os Kusanaty e seus espíritos e; o subterrâneo (mundo de baixo), é povoado pelos encantados e pelos espíritos do Kusanaty.

O “mundo terra”, dimensão, denominada pela lente ocidental de “meio-ambiente”, a qual chamaremos neste texto de “natureza”, é habitada por diferentes espécies de seres vivos, seja humanos e não-humanos, os quais estão organizados em sociedades habitando diferentes ecossistemas: aquático, terrestre e ar. Importa sublinhar, que parte desses habitantes são agências espirituais – com os quais mantemos relações de alteridade e respeito – guardiãs e controladoras, responsáveis pelo manejo, manutenção e equilíbrio desses espaços, sendo esses aspectos vitais para a existência, sustentabilidade, manutenção e continuidade do planeta.

Ainda em relação à terra, uma explicação para a existência dos terremotos, é dada pelo indígena antropólogo Francisco Apurinã:

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A cosmovisão Apurinã ensina que, o mundo está sobre os ombros de dois Kusanaty, e uma explicação para existência dos terremotos, é quando os Kusanaty mudam o mundo de um ombro para o outro, e se por acaso, os dois se cansarem, o mundo acaba. Os Kusanaty, em especial os mais fortes e de quem muito se [h]ouve falar nas mais variadas histórias orais, são capazes de andar livremente pelas outras terras e mundos. A terra é redonda, como uma tampa, e é dominada pelo mar, pela água, por todos os lados (APURINÃ, 2019, p. 52).

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Dessa forma, entendemos que para cada ecossistema ou espaço há um ou mais guardiões controladores, que cuidam desses lugares e das vidas que neles habitam. Esses seres controladores são agências espirituais dos Kusanaty, que, ao viajar para outros mundos – movimento que o senso comum chama de morte –, se transformam em animais para construírem novas moradias. É afirmado por sábios/as do povo Apurinã, que eles não morrem, apenas se transformam.

Todavia, transformar-se em animais, não é uma regra para esses diplomatas do cosmos, dotados de faculdades especiais e de múltiplas capacidades, porque eles também podem continuar em seu próprio corpo de kãkyty (gente) ou mesmo atuar em espírito, ou em forma de vento, trovão, ou ainda apenas com sua sombra. Isso vai depender unicamente do contexto, objetivo e de sua intencionalidade. Para o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro:

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Humanos e não humanos, todos são providos de um mesmo conjunto básico de disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas, ou, em poucas palavras, de uma alma semelhante, incluindo um mesmo modo que poderíamos chamar de performativo, de apercepção. Os animais e outros não humanos dotados de alma se veem como pessoas, portanto, em condições e contextos determinados, são pessoas, isto é, são entidades complexas com uma estrutura ontológica de dupla face, uma visível e outra invisível (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 43-44).

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Partindo dessa perspectiva, notemos que os kusanaty são um ser plural, com diferentes faces e identidades, além de contar com conhecimentos e habilidades transcendentes, capazes de se transformá-los no ser que eles quiserem, inclusive neles mesmos. São agentes responsáveis por transformações cíclicas do devir humano, fato que lhes permite transitarem livremente pelos espaços cósmico, terrestre, aquático, aéreo e subterrâneo.

Eles possuem os códigos e técnicas para se comunicarem e interagirem com os espíritos, com os humanos e com não-humanos, sendo também responsáveis pelas relações diplomáticas e de socialidades entre os diferentes mundos, espaços e seres vivos. Fazem isso, em vida ou em espírito, vistos ou invisíveis, acordados ou em sonhos. Seus poderes são ilimitados, o que faz deles os seres mais importantes de nossos territórios.

Sua atuação se dá, principalmente, em função do manejo, proteção, equilíbrio e manutenção do planeta. Se por acaso, algum desses aspectos não estiver alinhado com os diferentes mundos, ambientes e demais espaços existentes, o mundo poderá sofrer sérias consequências, como está acontecendo atualmente com a natureza em que presenciamos, constantemente, rios e igarapés secarem em razão do desflorestamento, florestas e animais serem destruídos pelo fogo e escassez de recursos naturais culminando para a intensificação da fome em muitas aldeias indígenas e comunidades tradicionais. Todos esses crimes seguidos de mortes em que diferentes espécies de seres vivos são vitimadas, incluindo a espécie humana, são efetivados pelo próprio homem.

Os kymapury[1] surgem nesse contexto como mais um componente relevante para as operações sociais e diplomáticas dos Kusanaty e para os diferentes movimentos realizados pelos Apurinã. Os kymapury são lugares em que as pessoas em grupo ou individualmente, pensam, planejam, tomam decisões, mas também namoram e se reproduzem. Nessa perspectiva, os caminhos são vistos pelos mais idosos como espaços de proteção, conhecimento, transmissão, alteridade, troca e reconexão.

Os kymapury são os responsáveis pela ligação do povo Apurinã com tudo aquilo que faz parte de suas vidas e cotidiano. Foi assim, desde sua cosmogênese e não é diferente na contemporaneidade. É por meio dos caminhos que acessamos os mais diferentes lugares e serviços, muitos deles inclusive vitais, seja no âmbito interno ou externamente.

De acordo com nossa cosmologia, foi através do kymapury que nós Apurinã saímos de kairyku (buraco de pedra – de onde somos originários) para iputuxyty (terra de imortalidade). Quando passamos por essa terra morredoura em que vivemos hoje, ficamos entusiasmados com sua beleza e encanto, motivo pelo qual, permanecemos aqui (mais informações ver: APURINÃ, 2022).

Em contexto mais atual, são os caminhos que nos levam aos barreiros de caças; aos lagos, rios e igarapés, onde realizamos as atividades de pesca; aos roçados para plantar, manejar e coletar vegetais; às mais variadas árvores frutíferas e para as outras aldeias. É também através dos caminhos que temos acesso a escolas, universidades, hospitais, reuniões, comércios, cartórios, cidades e assim por diante.

2. Os kymyrury enquanto espaços ontológicos, sagrados e moradias dos Kusanaty

Num de nossos diálogos sobre os kymyrury – lugares que são respeitados, particulares e temidos pelo nosso povo Apurinã – Katãury, meu pai, enfaticamente ressaltou: “É de lá dos kymyrury que os Kusanaty protegem nossas aldeias, eles são muitos..., são tantos que ninguém consegue contá-los, são seres poderosos, imortais e ninguém pode com eles”.

Os kymyrury são parte do saber ontológico Apurinã e, para tanto, são locais esotéricos e sagrados que apresentam dicotomias condescendentes e fundamentais, pois ao mesmo tempo em que são vistos por nós como lugares respeitados, intocáveis e jamais transformados, são também fontes que alimentam e nutrem os corpos, mentes e espíritos dos Apurinã, porque, é de lá que vem a cura, o alimento, a força e o nosso conhecimento.

Segundo os sábios/as Apurinã, os moradores dos kymyrury são exigentes, eles castigam rigorosamente as pessoas que desobedecem às agências espirituais que habitam esses lugares, bem como seus ensinamentos existentes desde os primórdios da humanidade. Lá pode ser considerada uma cidade, mas também uma aldeia, tendo em vista que tudo que existe aqui também existe lá, mas com suas particularidades e valores específicos. Contudo, somente os Kusanaty com suas faculdades e conhecimentos podem transitar, pois somente eles podem compreender a língua que é falada nesses lugares e os únicos com permissão para entrar e sair a qualquer momento. Assim ensinou o tuxaua Umanary Apurinã:

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Os Kusanaty estão morando no kymyrury, de lá eles nos enxergam, nos protegem e sabem tudo que estamos fazendo aqui. Por isso, muitas vezes, ficamos doentes. Isso é algum tipo de castigo pelas coisas erradas que fazemos. Muito deles se assustaram com o barulho dos carros e dos motores, com medo e irritados foram para longe da nossa aldeia, e assim, ficamos um pouco desprotegidos. Além de afastar os Kusanaty e demais agentes espirituais que transitam entre a terra e o céu, as obras da rodovia federal BR-317 também afastaram e destruíram muitos de nossos recursos como igarapés, lagos, caças, frutas e outros que fazem parte do cotidiano do nosso do povo (UMANARY, Aldeia Camicuã, 2018).

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O depoimento do tuxaua Umanary acima mencionado ocorreu durante minha última pesquisa de campo, com vista a conclusão da tese de doutoramento. Aquela ocasião foi oportuna para conhecer o que pensa o Kusanaty Makaputenyky Apurinã sobre o assunto:

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Os kymyrury são lugares limpos e calmos, por isso é a principal morada dos pajés e de outros seres. Muitos pajés que moravam aqui em nossa aldeia agora moram lá, mas eles não fazem mal com ninguém. Lá tem aqueles irary (queixada), que é criação deles. É de lá que eles saem para cá. Os pajés que soltam eles – antigamente eles soltavam muito, por isso era fácil de matar, mas depois que eles fecharam o portão, hoje é difícil até da gente ver algum deles por aqui. Os encantados também moram lá no kymyrury. Lá também é igual aqui na aldeia, tem casa, tem criação, tem plantação, mas a criação deles são kema (anta), myryty (porquinho), manyty (veado). Para as pessoas que não têm conhecimento, lá é apenas um campo limpo, mas para os kusanaty, aquele local é uma aldeia deles. Os daqui conversam com os de lá e muitos são parentes (MAKAPUTENYKY, Aldeia Camicuã, 2018).

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Ao indagar o Kusanaty Makaputenyky sobre os possíveis acontecimentos negativos às agências espirituais e demais moradores do kymyrury, caso os impactos chegassem até eles, incisivamente ele respondeu:

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Não vai acontecer nada. Eles vão continuar lá. Aqueles lugares são deles, ninguém consegue tomar. Se alguém tentar fazer isso, eles matam todos que se aproximarem para fazer o mal. Aquele lugar é a aldeia deles. Do jeito que nós brigamos com os brancos quando invadem nossas terras, eles também vão brigar com as pessoas que se aproximar de lá. A diferença entre nós e eles é bem simples: eles têm muito poder e nós não temos. Eles são muitos e não morrem, eles nunca acabam. Foram eles que ensinaram nossos kiiumanhe (tronco velho) para virar Kusanaty. Aqueles que moram lá, foram eles que deram arapany (pedra xamânica) para nossos kiiumanhe. Eles têm poder de encantar quem eles quiserem, mas preferem fazer isso com aquelas pessoas que são teimosas e que praticam coisas ruins. Os pajés assim como os encantados são kãkyty (gente) assim como nós, eles nasceram na própria natureza. Aqueles não nasceram de mulher não, eles estão aqui desde o primeiro mundo. Tsura (demiurgo, criador do povo Apurinã) já acabou o mundo duas vezes, muita gente morreu, mas eles continuam no kymyrury do mesmo jeito (MAKAPUTENYKY, Aldeia Camicuã, setembro de 2018).

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É importante ressaltar que, pela ótica do povo Apurinã existem outros lugares análogos aos kymyrury também constituídos de Kusanaty que foram embora desta terra de maneira distintas e inusitadas. Os sábios deste povo falam do mundo dos encantados, mundo dos espíritos das onças e dos patamares celestes, onde mora Tsura (demiurgo). Além desses, existem outros ecossistemas aquáticos e terrestres que são divididos pelas suas formas e características especificas, tais como os rios, igarapés, buritizais, tabocais, chavascais lagos e queimadas[1].

Esses lugares também são povoados por agentes xamânicos, comumente camuflados no corpo de animais, como imeny (cobra), hãkyty (onça), tukyti (mapinguari), kukui (gavião real), besuri (boto), pesuty (peixe elétrico) e outros. Vejamos o que disse, Katãury sobre um desses lugares:

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O espírito de índio mora onde tem kynhary (buriti), porque onde tem kynhary tem espírito do encantado, o espírito dele vai buscar na terra aquele que ele gosta para ir morar com ele debaixo d’água, mas ele também encanta aquela pessoa que ele não gosta, lá eles se transformam em imeny (cobra). O kymyrury é um lugar de encantado, mas os espíritos dos Kusanaty também moram em outros lugares, eles gostam de lagos, rios e igarapés. Quando eles estavam perto de ir embora, eles pediam para serem enterrados em buracos rasos para facilitar sua saída, aqueles lugares que eles vão morar logo vira um lago com vitória-régia em cima. Meu pai conta que dias antes do meu bisavô ir, ele tinha malhas da cobra no seu corpo. Cada Kusanaty é dono de um lago, lá sempre tem muito peixe e nunca falta, caso o Kusanaty vá embora os peixes vão juntos (KATÃURY, Rio Branco, 2017).

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Esses seres são Kusanaty que foram embora desta terra e se tornaram guardiões controladores desses lugares. Ali eles são soberanos, protegem os demais habitantes e ainda contribuem para a sustentabilidade de humanos e não-humanos, visto que durante sua permanência nesses recursos aquáticos e terrestres não há escassez de peixes, caça e frutas, por exemplo. Esses lugares, assim como os demais já mencionados, são bastantes temidos e exigem determinadas etiquetas para entrar e sair deles, o acesso não se dá de qualquer jeito.

No passado esses controladores habitavam esses lugares por tempo indeterminados, mas com a chegada do homem branco e de seus empreendimentos causadores de impactos significativos aos territórios indígenas – que geralmente estão atrelados à destruição desses e de outros espaços – muito desses guardiões estão migrando para outros lugares, levando com eles, os peixes, as caças, as frutas e outros recursos naturais. Além disso, a ausência desses guardiões causa o desaparecimento desses recursos, deixando o local sem vida e os humanos com fome (mais informações ver: SARMENTO, 2107; 2018).

No caso de Katãury, meu pai, ele não faleceu, apenas atravessou para o outro lado do rio, encantou-se, passando a morar num desses ecossistemas controlados por agências espirituais. Esse movimento aconteceu em agosto de 2019, um mês antes da defesa de minha tese de doutorado. Mesmo assim, Katãury continua muito presente na minha vida, inclusive sendo meu maior interlocutor para minhas produções acadêmicas/científicas como esta. Em nosso último diálogo – ocorrido em julho de 2018 – sobre os kymyrury realizei uma entrevista com ele para composição de minha pesquisa de doutorado. Segue abaixo trechos da entrevista:

Francisco Apurinã – Pai, como é lá no kymyrury?

Katãury – Lá é normal, é igual na aldeia, tem tudo..., tem casa, pé de caju, banana, abacaxi. No mundo dos encantados tem todo tipo de plantação, lá as pessoas vivem como aqui na terra. Lá a gente encontra nossos parentes do mesmo jeito de quando eles moravam aqui, mas muitos deles já têm outras famílias vivendo normalmente.

Francisco Apurinã – Pai, qual é a importância do kymyrury para nós Apurinã?

Katãury – Ninguém pode chegar perto desse lugar, nós chamamos também de campo de natureza, lá é um lugar respeitado, onde mora nossos sábios, nossos troncos velhos. Os kusanaty, quando vira cobra ou outro bicho, momento que muita gente pensa que eles morreram, eles vão ser donos e proteger diferentes lugares na terra, na água e no ar, como os mãnẽ (lago), rios e igarapés. Já outros vão direto para o kymyrury. Enquanto outros vão habitar outros mundos, como o mundo dos encantados, o mundo dos espíritos das onças, tem outros que vão para o andar de cima morar com Tsura. O local a ser habitado vai depender do grau de poder que cada um tem. Eles são muitos, eles nunca se acabam – sempre vão existir. Muitas pessoas não acreditam, mas são eles que causam alagação, terremoto, deslizamento de terra, toda essa destruição na terra que causa morte de muitas gentes, são os Kusanaty com raiva do que os kariua (não indígena) estão fazendo com a criação de Tsura. Tem um momento certo que todos eles se juntam no kymyrury e quando isso acontece, é para fazer festa, o nosso xingané. Eles dizem assim: “aunty karakãmãry kyynyry”. Essa festa é feita no próprio kymyrury.

Francisco Apurinã – Os moradores do kymyrury tem poder?

Katãwiry – Eu já disse, quem mora no kymyrury são meus avós, são os Kusanaty, eles são grandes, eles são deus para nós, são únicos, eles não morrem e serão assim para sempre...., de lá onde estão, eles protegem nossas aldeias. Eles vêm me ver quase todos os dias, vem saber como estou, nós conversamos vários assuntos. Eles não acabam com todos os brancos, porque não querem, tem pena de muitos que não tem culpa, morrerem. Eles ficam com raiva quando os brancos destroem alguma coisa que Tsura deixou para nós. Tu vê quando a televisão mostra que a tempestade matou, não sei quantas pessoas e deixou outras sem casas? Pois é, meu filho, aquilo são os Kusanaty se vingando, mas o homem branco não entende isso e nunca vai entender. A vista deles é muito curta e a mente fraca para entender a força da natureza. Nós somos parte da natureza, nós entendemos a fala dos animais, respeitamos quando não devemos matar nenhum, sabemos o que as árvores sentem, pedimos licença quando entramos na água, porque cada lugar desses tem um Kusanaty ou espírito dele que os protegem. Quando alguém derruba um pé de pama (fruta), é como se estivesse derrubando um parente nosso, é assim que sentimos quando alguém faz mal. Tudo tem vida. Se o kariua continuar tratando mal esses lugares, vai chegar um dia que Tsura e os Kusanaty vão destruir esse mundo e esse mundo é o último. É assim meu filho, eu me sinto metade aqui com vocês, mas minha outra metade já está no mundo dos encantados. Todos os dias teu bisavô vem me buscar, ele me diz assim: “Meu neto vamos embora, sua casa já está pronta só esperando por você!”.

É possível notar nas sábias palavras dos Apurinã, que o kymyrury é um lugar diferente, temido e respeitado face aos demais lugares situados em nossos territórios. Nota-se também, que este lugar é residência de espíritos dos Kusanaty, mas isso não quer dizer, que seja um espaço de aspectos nefastos ou fúnebres, pelo contrário, como afirmam os tuty (sábios) e os Kusanaty Apurinã. Lá é uma aldeia como as que conhecemos aqui, as pessoas que lá residem são aquelas que um dia moraram aqui nesta terra e quando completaram seu ciclo vital, foram a habitar esses espaços, geralmente metamorfoseado em pele de animal ou em seus próprios corpos (mais informações ver: APURINÃ, 2019).

Para muitas pessoas, essas questões da vida indígena podem parecer apenas imaginárias e mitológicas, sem base ou efeito científico. Mas, para mim e para muitos indígenas e não-indígenas com vivências análogas, elas são o substrato da essência e do sentido da vida. Assim como muitos acreditam substancialmente em suas mais variadas doutrinas religiosas, nós Apurinã acreditamos que Tsura é o criador de todas as coisas; além disso, acreditamos nas relações diplomáticas dos Kusanaty entre os diferentes mundos, movimento que promove o equilíbrio, sustentabilidade e manutenção do cosmos. Dessa forma, alguns pontos parecem-me relevantes para o entendimento desta relação entre a vida nesta terra e nos outros mundos.

3. Transformações ambientais e climáticas a partir de olhar indígena

Os Apurinã desde os primórdios da humanidade tiveram uma relação de respeito com seus territórios, com os animais que caçam, com os peixes que pescam, com as frutas que coletam e com os diferentes ecossistemas, seja terrestre, aquático, subterrâneo ou celeste. Para cada lugar desses, há um guardião controlador que protege todos que ali habitam, sejam eles grandes ou pequenos – de modo que cada espécie possui uma função específica naquilo que se convencionou chamar de natureza, aqui entendida como o mundo que os “humanos” dividem com outros sujeitos – como os membros dessas espécies e seus chefes, que também têm funções e ontologias próprias.

Katãury sempre demonstrou bastante preocupação com as mudanças e transformações ambientais e climáticas, fatos, atualmente, comuns e recorrentes, resultando na modificação da paisagem da floresta e da natureza como um todo, no desaparecimento da fauna/flora e na seca de rios, lagos e igarapés. A vida, tanto dos humanos como dos não-humanos, depende de uma convivência respeitosa e de interdependência em que a alteridade não se separe de outros aspectos de interesse mútuo.

Quando perguntados sobre sua percepção acerca dos efeitos das mudanças climáticas em seus territórios, muitos Apurinã, sobretudo os mais idosos – que vivem e se orientam pela concepção do calendário tradicional – relataram que “o tempo mudou muito”, “o tempo não acontece mais como antigamente”, “agora não é mais como antes”, que os tempos/dias agora estão “muito quentes” ou que “esquentou muito”. Com isso, apresentam que as estações não ocorrem mais nos tempos exatos, que as florações e frutificações das plantas não ocorrem mais com regularidade, nem a “piracema” (reprodução dos peixes) acontece em tempos certos, que já não tem mais os peixes, as aves e animais como antigamente, o cultivo de seus produtos não ocorre mais na devida estação, que mesmo as pessoas não vivem mais como antes.

As transformações ambientais chegam nos territórios indígenas de diferentes formas e por todos os lados, causando sérios impactos às vidas de humanos e de não-humanos, inclusive muitos desses impactos são de natureza irreversível. É comum que muitos desses prejuízos sejam provocados pelas obras de instalações de grandes empreendimentos como: rodovias, ferrovias, hidrelétricas, aeroportos, linhões de energia elétrica e outros, responsáveis pelos danos e poluição ao meio ambiente.

O fato é que, muito facilmente, esses projetos de empreendimentos desconsideram – tanto para sua instalação como para a formulação de ações mitigatórias e compensatórias – o valor e o significado dos lugares sagrados, dos seres que os habitam e das relações que nós povos indígenas mantemos com eles. Diante desse contexto, não é difícil perceber os prejuízos degradantes à vida dos indígenas, a qual, por estar integrada e em sinergia com o ambiente, inserida em uma relação cósmica, tem sua realidade sociocultural comprometida.

Quando isso acontece, aqueles que nos protegem vão embora com raiva da destruição que fazem sobre suas habitações. Esses espaços têm donos, possuem agências que protegem as vidas que ali habitam, portanto, para entrar nesses lugares, é preciso pedir licença, afinal de contas, não se adentra a casa do “outro”, dos seres espirituais e de ninguém, sem autorização do dono. É mais sensato que se tome o respeito como modo de relação e de alteridade.

Minha trajetória profissional me permitiu conhecer as imprecisões presentes nos processos de licenciamento ambiental, as quais influenciam negativamente os resultados, responsabilidades/compromissos e pactuações entre os órgãos envolvidos. Ainda que exista um conjunto de leis que regulamenta, orienta e delibera sobre o procedimento de instalação de um empreendimento causador de grande impacto ao meio ambiente, o que geralmente vemos são ações mitigatórias e compensatórias sendo executadas de maneira disjuntiva e parcial, restringindo a participação indígena no processo de construção (garantida em lei).

Além disso, tais ações não levam em conta a pluralidade étnica e as mobilizações particulares dos povos indígenas, o que resulta em ações ineficazes e homogêneas, que mais prejudicam que ajudam. Isso referente aos impactos causados ao meio físico (biótico e abiótico); quanto aos impactos sobre o metafísico, ou seja, a destruição de lugares respeitados por serem proibidos e sagrados para nós indígenas, como os kymyrury, por exemplo, ficam implícitos. Comumente, os “relatórios de impactos” e documentos análogos que são produzidos no âmbito do processo administrativo do licenciamento ambiental, não os tornam elucidativos, tampouco cria-se medidas de proteção ou política de compensação e mitigação para esses espaços ocupados por agências espirituais.

Com isso em vista, procuro também elucidar neste texto, os valores e significados dos lugares habitados por diferentes formas de vida, dos seres humanos, espirituais, e dos Kusanaty, que são os guardiões dos conhecimentos relativos à cura, das relações diplomáticas com os ambientes, bem como dos ritos e dos demais aspectos de nossas vidas que são culturais e sagrados para nós Apurinã.

Defendi alhures (APURINÃ, 2015), a importância dos Kusanaty estarem associados à existência desses ambientes, dos recursos naturais, dos seres e de seus guardiões controladores. Nessa existência, há conexão e sustentabilidade entre humanos e não-humanos; a alteridade e o respeito são os pontos decisivos dessa relação e, sem eles, tais lugares não continuarão a existir.

Debruçando-se sobre as histórias da humanidade e as narrativas míticas, a antropologia contemporânea vem discutindo as diversas visões de mundo e concepções de natureza e cultura, bem como outras temáticas, possibilitando, assim, novos olhares e reflexões a partir de perspectivas de diferentes povos indígenas.

Para Fernandes-Pinto (2017)[1], na contemporaneidade, importantes paradoxos têm desafiado o modelo de desenvolvimento adotado pela sociedade hegemônica – fundamentado na divisão entre sociedade e natureza –, que vem resultando em um processo contínuo de agravamento dos problemas socioambientais e de degradação dos recursos naturais em escala planetária. Segundo Costa:

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Relembro aqui como Lourenço Kinthãulhu, do povo Nambiquara, mostrava-se indignado com a chegada das fazendas, agropecuárias e outros elementos levados pelos não-indígenas aos seus territórios, dizendo que os espíritos “estavam muito zangados e que, pelo barulho dos carros, caminhões, motores e muitas conversas, alguns não estavam mais ali” (COSTA, 2009, p.133).

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Esse recurso a explicações nativas, o apelo ao “ponto de vista” indígena, pode parecer ingênuo, mas atravessa as maiores referências de debates da antropologia e de outras ciências, abarcando desde a questão do valor que esses diferentes segmentos dão às “teorias locais” até a questão da natureza da autorepresentação etnográfica. Dessa forma, nosso desejo é que este texto elucide a maneira pela qual essa questão remete à licença dos espíritos que habitam os lugares sagrados e interagem, a partir desses ambientes, com a vida humana.

Diante do que já foi dito, é importante destacar a relação do ser humano com esses lugares. Para isso, tomo como base de diálogo a ideia de que nós Apurinã e, certamente, outros povos indígenas somos detentores de olhares, concepções e experiências de mundo, distintas das ocidentais – algo próximo àquilo que Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameríndio. Fernandes-Pinto (2017) aborda as cosmovisões indígenas da seguinte maneira:

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Entretanto, distintas percepções de mundo vêm também se perpetuando na história da humanidade, especialmente entre povos indígenas e outros grupos de populações tradicionais cujos sistemas de crenças e modos de vida em geral estão vinculados a uma profunda sabedoria sobre a natureza, alicerçados em cosmovisões onde todos os aspectos da vida estão interligados. Para muitos desses grupos, os elementos naturais também traduzem múltiplos significados espirituais, representados tanto no plano material o “visível” – quanto na sua dimensão imaterial o “invisível” (FERNANDES-PINTO, 2017, p.15).

3.1. Transformações ecológicas: preocupação e reação

No entanto, como foi dito, as preocupações e discussões acerca dos kymyrury e do clima no planeta só aumentam. Independentemente de como os eventos relacionados a isso vêm sendo chamados, eles acarretam resultados impresumíveis sobre a vida de diferentes seres, em muitos casos, de forma inexorável. Assim, vivemos numa época em que a humanidade e a não-humanidade são constantemente insultadas e lesadas por meio de ações predatórias como desmatamento, poluição, mineração e instalação de empreendimentos geradores de impacto de proporção significativa.

Do outro lado, como resposta, assistimos às inundações, temporais, desmoronamentos, deslizamentos de terra, secas pela ausência de chuva, rompimento de barragens, fome, dentre outros eventos. Em minha opinião, tais catástrofes ambientais, que chegam inclusive acompanhadas de diferentes epidemias e/ou pandemia como no caso do Novo Coronavírus, é muito provável que sejam agências espirituais reagindo contra a destruição de suas habitações e de outros seres que ali também residem.

A manutenção e o equilíbrio da floresta – e, consequentemente, do planeta – são fundamentais aos povos indígenas, mas, para que isso aconteça, é preciso que haja equilíbrio e uma boa conexão com os espíritos que habitam o cosmos. Por essa via de interpretação, a problemática contemporânea se expressa como a manifestação de uma crise de valores e de paradigmas estruturantes da humanidade.

A concepção de lugares sagrados representa uma prática muito antiga e propagada por todo o mundo. Ao expressarem valores espirituais ancestrais e a visão de sacralidade da natureza de vários grupos sociais, esses lugares, além de fundamentais para a vitalidade e a sobrevivência das identidades culturais, têm se revelado também como importantes refúgios de biodiversidade, favorecendo a manutenção de áreas naturais bem conservadas.

Assim, dentro da ideia de que os povos indígenas consideram seus territórios, em sua totalidade, como sagrado, os kymyrury recebem um tratamento especial por se tratar de um espaço que acreditamos ser o coração dos territórios Apurinã, pois é lá que moram os Apurinã que foram embora – em especial os Kusanaty em espíritos, agentes responsáveis pelas conexões entre mundos, ecossistemas, seres humanos e não-humanos. Por isso, esses lugares são merecedores de respeito e reverência; do contrário, seus donos podem voltar-se contra os que não têm essa atenção.

O antropólogo indígena João Paulo Barreto do povo Tukano comenta sobre as ideias de lugares e seus habitantes no pensamento de seu povo. Em suas palavras:

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O espaço-terra, espaço-água, espaço-floresta e espaço-aéreo são as casas dos seres invisíveis (waimashã), contudo, para fazer uso e mesmo circular por esses espaços (casas), os humanos precisam pedir “licença” a eles. Caso isso não seja feito, os waimashã se voltam furiosos contra as pessoas podendo lhe causar doenças que podem levar à morte (BARRETO, 2013, p. 71).

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Percebemos que esses espaços reverenciados pelos povos indígenas possuem proteções de potências invisíveis, que são suas donas. Assim, esses espaços exigem respeito enquanto transitamos neles, pois aqueles que não se adequam às suas regras são duramente punidos.

Tsura criou o mundo e nos confiou para cuidarmos, mas tal compromisso não se aplica apenas para os povos indígenas, mas para toda humanidade. Nossa espiritualidade e nossas responsabilidades definem nossos deveres, por isso, acreditamos que o termo governança está substancialmente envolvido num pano de fundo que aglutina a espiritualidade e a responsabilidade por quem e por onde estamos.

Para Venne (1998), trata-se de uma visão cíclica da soberania, incorporada à nossa filosofia tradicional e visão de nossas responsabilidades. Para a autora, isso

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[é] muito diferente do conceito de soberania ocidental, que se baseia no poder absoluto. Para nós, poder absoluto está no Criador e na ordem natural de todos os seres vivos; não apenas nos seres humanos... Nossa soberania está relacionada com nossas conexões com a terra e é inerente. A ideia de nação não se aplica apenas a seres humanos. Nós chamamos de nação os búfalos ou os lobos, os peixes, as árvores, e todos mais. Cada uma é soberana, uma parte igual da criação, interdependente, entrelaçada, todos estão relacionados (VENNE, 1998, p. 23).

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Dentro dessa discussão, devemos estar atentos e entender que o outro – neste caso, o não-humano – é tão digno de respeito quanto nós. Partindo dessa racionalidade, não podemos esquecer, por exemplo, que a produção de oxigênio – um dos fatores responsáveis e vitais para a continuidade das vidas do planeta – depende exclusivamente da existência da terra, da água, do ar, das camadas cósmicas e de seus mais diferentes agentes sociais.

3.2. O resultado de um governo despreparado e omisso

Nos últimos anos, tem aumentado descontroladamente a destruição da natureza e de seus habitantes, causando sérias mudanças ambientais e climáticas em diferentes lugares do mundo. Essas mudanças têm origem diversas, mas acreditamos que as principais delas, estão relacionadas à economia, política e globalização, cujos efeitos se manifestam por meio terrestre, aquático e ar.

No Brasil, assistimos durante os últimos quatro anos, o governo tentar introduzir novas leis, que ferem e enfraquecem os direitos originários e constitucionais que protegem os povos indígenas. Essas leis promovem a exploração ilegal dos recursos naturais, sobretudo, ocasionada pelas instalações de grandes empreendimentos, agroindústria, invasões e outras ações que resultam em sérios impactos e prejuízos ao meio ambiente.

Assim, temos presenciado um contexto político iminentemente desfavorável aos povos indígenas, causado principalmente pela violação de seus direitos, desmonte de órgãos ambientais e indigenistas, paralisação de processos de regularização fundiária, bem como a ausência dos órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção dos territórios indígenas. Infelizmente tais fatores contribuíram fundamentalmente para o aumento de invasões e exploração ilegal de seus recursos naturais, sobretudo daquelas terras que ainda não foram homologadas.

A partir desse cenário caótico e de retrocesso que atravessam os povos indígenas, reflexo da ausência e da ineficácia das políticas públicas e indigenistas, importa enfatizar que são os próprios indígenas que realizam as vigilâncias e fiscalizações de seus territórios, mesmo que para isso, tenham que sofrer agressões física e moral, ofensas racistas e preconceituosas, ameaças seguidas de mortes e outros delitos.

Nesse sentido, faço uso de algumas palavras iniciais, quando mencionei, que este texto seria antes de qualquer coisa, reflexivo e complementar. No entanto, é importante que observemos a necessidade de refletir sobre outros textos de autoria indígena ou não, pois cada pensador traz contribuições importantíssimas e fundamentais, nos possibilitando realizar mergulhos mais aprofundados nesse e em outros assuntos também relevantes, tornando-se um movimento necessário, principalmente nesse período tão obscuro que atravessamos. É imprescindível conhecermos explicações do mundo a partir de outras cosmologias, por isso, é preciso que nos vejamos como caracteres de uma antropologia diversa, ou reversa.

4. Considerações finais

Trilhando as últimas linhas deste texto, além do que já foi dito, é importante reiterar que nossos territórios Apurinã, assim como os recursos naturais, os ecossistemas, e as vidas que neles existem, são muito mais que um meio de vida: aqui estão nossa essência originária, nossas histórias e nosso jeito de ser, enxergar e de estar no mundo. Terra, para os Apurinã, não é pensada pela ótica consumista ou capitalista, que visa, sobretudo a lucros financeiros e econômicos, tampouco está condicionada a valores materiais. O material e o imaterial, aqui, têm valores iguais, porque são realidades simbólicas e essenciais para nossa vida, ainda que sejamos, muitas vezes, ameaçados e forçados a desistir de nossos territórios ou presenciar habitações de agências espirituais serem destruídas sem pudor.

Vimos no decorrer do texto, que os Kusanaty são os verdadeiros responsáveis pelas relações diplomáticas e de socialidades entre os diferentes mundos, ecossistemas e seus habitantes. Por isso, são reconhecidos pelos Apurinã como detentores de conhecimentos que lhes permitem transitarem livremente por onde desejarem, sejam em seus corpos ou no corpo de outro ser vivo, sendo vistos ou não, em vida ou em espírito, acordados ou em sonhos. De acordo com Francisco Apurinã:

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Sua autonomia singular permite ao Kusanaty ter domínio sobre os animais, fazendo com que eles ajam sob seu comando. Em muitos casos, o xamã ordena que uma cobra ou outro ser pique/machuque uma pessoa para que, depois, ele mesmo a cure – seja para demonstrar seu poder ou simplesmente para “brincar” com as pessoas de quem não gosta. Isso ocorre de uma maneira que somente outros pajés com saberes análogos podem compreender (APURINÃ, 2022, p. 116).

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As questões aqui levantadas possibilitam uma discussão acerca da ontologia do xamanismo Apurinã e as reflexões são resultados de diferentes perspectivas: breves análises acadêmicas no campo da antropologia; a vivência nativa mediada pelo treinamento antropológico; e a vivência proporcionada por diálogos entre o autor, seu pai e outros detentores desse e de outros conhecimentos.

De modo que este trabalho é apenas uma pequena contribuição, resultado de um recorte da imensa base de concepções e saberes epistemológicos e ontológicos praticados por nós Apurinã e por outros autores. Creio, entretanto, que este texto abre janelas para que novas pesquisas aprofundem o conhecimento sobre o tema, de modo que outros possam vir a complementá-lo, dando mais densidade e qualidade à discussão.

Nesse sentido, desejo que este trabalho desperte o interesse de outros indígenas ao desafio de investigar, pois é necessário explorar outros temas ainda não trabalhados, aprofundar conceitos e trazer novos entendimentos e contribuições para a antropologia.

Acredito ser importante exprimir o pensamento a respeito dos termos e conceitos indígenas sob uma lente compreensível para o contexto científico e acadêmico e para o público em geral, porque é exatamente nesses pontos que se dá nossa contribuição, enquanto pensadores indígenas, para a antropologia e para outras ciências.

Certamente, isso foge aos paradigmas da epistemologia ocidental; mas, afinal, é isso que nos torna diferentes de outras sociedades. Por outro lado, considero que a academia deveria incentivar pesquisas sobre os conhecimentos indígena e não-indígena, de modo que eles sejam entendidos como complementares e não como opostos mutuamente excludentes. Quiçá, assim, possamos encontrar novos campos de entendimento e novos métodos de diálogo com o conhecimento do outro.

Informações Complementares

Conflito de Interesse

O autor não tem conflitos de interesse a declarar.

Declaração de Disponibilidade de Dados

O compartilhamento de dados não é aplicável a este artigo, pois nenhum dado novo foi criado ou analisado neste estudo.

Referências

APURINÃ, Francisco. Do licenciamento ambiental à licença dos espíritos/ Francisco Apurinã. – Rio Branco: Nepan Editora, 2022.

__________________. “Do licenciamento ambiental à licença dos espíritos: os “limites” da rodovia federal BR 317 e os povos indígenas”. Tese de doutoramento entregue Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília / Francisco Apurinã. Brasília-DF, 2019.

__________________. Nos caminhos da BR- 364: povo Huni Kui e a Terra Indígena Colônia 27. Curitiba: Editora Prismas, 2015.

BARRETO, João Paulo. Wai-Mahsã: peixes e humanos: Um ensaio de Antropologia Indígena. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Amazonas, 2013.

COSTA, Anna Maria F. Moreira da. O homem algodão: uma etnografia Nambiquara. Cuiabá: edUFMT, 2009.

DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas. Conferência pronunciada em 3 de fevereiro de 2007, Teatro Montreuil, arredores de Paris. Tradução: Cecília Ciscato. Coleção Fábula, Editora 34, 2016.

FERNANDES-PINTO, Érika. Sítios Naturais Sagrados do Brasil: Inspirações para o reencantamento das Áreas Protegidas. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social - EICOS, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Rio Janeiro, 2017.

SARMENTO, Francisco. “Natureza e cultura na estreita virada ontológica: Descola, Viveiros de Castro e Latour”. Trabalho final apresentado à disciplina Seminário Avançado em Teoria. Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, 2018.

____________________.. “Povos indígenas e mudanças climáticas no Rio Negro (Amazonas)”. Trabalho apresentado no Laboratório e Grupo de Estudos em Relações Interétnicas (LAGERI), 2017.

VENNE, Sharon H. Our elders understand our rights: Evolving international law regarding Indigenous peoples. Penticton, British Columbia: Theytus Books Ltd, 1998.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafisicas Canibais. Elementos para uma Antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.

Entrevista e depoimentos

KATÃURY (pai de Francisco Apurinã). Depoimentos sobre a história, costumes, xamanismo, ontologia e epistemologia do povo Apurinã. Rio Branco/AC, 2017/2018.

MAKAPUTENYKY (Kusanaty). Depoimento sobre os kymyrury e xamanismo Apurinã. Terra Indígena Kamikuã, município de Boca do Acre-AM, 2018.

UMANARY (tuxaua). Depoimento sobre Contexto Histórico de Colonização e Lugares Sagrados. Terra Indígena Kamikuã, município de Boca do Acre/AM, 2018.

Avaliação

DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2023.V4.N2.ID698.R

Decisão Editorial

EDITOR 1: Ana Vilacy Moreira Galucio

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0168-1904

FILIAÇÃO: Museu Paraense Emílio Goeldi, Pará, Brasil.

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EDITOR 2: Ângela Fabíola Alves Chagas

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4925-1711

FILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Pará, Brasil.

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CARTA DE DECISÃO:

Rodadas de Avaliação

AVALIADOR 1: Marilia de Nazare de Oliveira Ferreira

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9995-1938

FILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Pará, Brasil.

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AVALIADOR 2: Januacele Francisca da Costa

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5482-1125

FILIAÇÃO: Universidade Federal de Alagoas, Alagoas, Brasil.

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RODADA 1

AVALIADOR 1

2023-09-18 | 16:18

O texto está em concordância com as solicitações da Revista

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AVALIADOR 2

2023-10-13 | 07:55

Do ponto de vista teórico e metodológico, bem como com relação a sugestões para melhorar o impacto do trabalho, por acreditar que ele seja já impactante em termos dos materiais apresentados e das explanações fornecidas por um autor bastante autorizado – de dois pontos de vistas –, nada gostaria de sugerir. Entretanto, proponho que as falhas mais contundentes em termos de apresentação formal/uso da linguagem sejam revistas: concordância gramatical (verbal e nominal); uso de vírgulas; uso de conectores/articuladores lógicos; completude de períodos; revisão das referências.

How to Cite

APURINÃ, F. The Apurinã Kusanaty: Diplomats and Guardians of the Planet. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 4, n. 2, p. e698, 2023. DOI: 10.25189/2675-4916.2023.v4.n2.id698. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/698. Acesso em: 17 dec. 2024.

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