Introdução
Este artigo tem como objeto de estudo as chamadas construções de predicação secundária depictiva, como as que se encontram em (1). Embora esse seja um fenômeno verificado em muitas línguas do mundo, nosso foco neste trabalho reside no português brasileiro (PB).
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(1) a. [O João]i leu a carta [cansado]i. (depictivo orientado ao sujeito)
b. O João comeu [a carne]i [crua]i. (depictivo orientado ao objeto direto)
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Nesse tipo de sentença, um mesmo argumento recebe dois papéis temáticos, uma vez que participa de duas relações de predicação distintas: a relação de predicação primária, estabelecida com o verbo da oração matriz; e a relação de predicação secundária, estabelecida com o adjetivo depictivo. O argumento partilhado pelos predicados primário e secundário é também denominado controlador (SCHULTZE-BERNDT; HIMMELMANN, 2004) ou sujeito do depictivo. Em casos como (1a), diz-se que a predicação secundária se orienta ao sujeito porque o controlador do depictivo desempenha a função de sujeito da oração matriz, ao passo que em (1b) o depictivo se orienta ao objeto direto da oração matriz.1
Semanticamente, o adjetivo que aparece nessas construções, classificado como “depictivo” inicialmente por Halliday (1967, p. 63), expressa um estado de um participante da oração matriz, de modo que esse estado se mantém durante todo o tempo em que perdura o evento denotado pelo predicado primário (ROTHSTEIN, 2006, p. 210; HIMMELMANN; SCHULTZE-BERNDT, 2005, p. 4), havendo, nos termos de Bisol (1975, p. 30 e 41), uma relação de “contemporaneidade” entre a eventualidade expressa pelo predicado primário e a expressa pelo predicado secundário.2 Tipicamente, o depictivo exprime um estado transitório, identificado por alguns autores como uma propriedade stage-level (propriedade de estágios), na terminologia de Carlson (1977).3 Assim, as paráfrases apropriadas para as sentenças em (1a) e (1b) são, respectivamente, as que se encontram em (2a) e (2b), construídas com o conectivo “quando” e a cópula “estar”.
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(2) a. O João estava cansado quando leu a carta.
b. A carne estava crua quando o João a comeu.
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As construções de predicação secundária têm sido objeto de intensa discussão na literatura gerativa, inserindo-se em um amplo debate a respeito da noção de predicação — vide os trabalhos seminais de Stowell (1981, 1983), Williams (1980) e Rothstein (1983), bem como Chomsky (1981), Hornstein e Lightfoot (1987), Legendre (1997), Winkler (1997), Bowers (1993, 2001), Himmelmann e Schultze-Berndt (2005) e Irimia (2012), para citar alguns. No caso do português brasileiro, destacam-se os importantes trabalhos de Foltran (1999), Carreira (2008, 2015), Lobato (2016 [1990]) e Bisol (1975), por exemplo.
No que se refere à sintaxe, muitos desses trabalhos debruçam-se sobre a questão de como representar estruturalmente a relação de predicação firmada entre o predicado secundário depictivo e o argumento a que ele se refere. Uma linha de análise defende que uma relação de predicação é estabelecida no âmbito de uma projeção predicativa XP, em cuja posição de especificador se encontraria o sujeito (STOWELL, 1981, 1983). Como argumenta Ferreira (2017), essa linha de análise fundamentou a proposta de que um predicado secundário forma uma small clause (SC) adjunta, com a categoria PRO como seu sujeito, i.e., uma estrutura de controle, como exemplificado em (3).
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(3) a. [O João]i leu a carta [SC PROi cansadoi].
b. O João comeu [a carne]i [SC PROi cruai].
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Há, no entanto, trabalhos que defendem que o depictivo e seu sujeito não formam um constituinte small clause. É o caso dos proponentes da simples adjunção do adjetivo, como Lobato (2016 [1990]), Foltran (1999) e Carreira (2015), que defendem que o depictivo se adjunge a alguma projeção da oração matriz, sem formar uma mini-oração. Outras análises contrárias à formação de uma SC incluem a proposta de formação de um predicado complexo pelo predicado secundário e pelo verbo da oração matriz (e.g. IRIMIA, 2012; ROTHSTEIN, 2004a).
Uma segunda questão a ser pontuada, relativa à sintaxe da predicação secundária, diz respeito à concordância observada entre o depictivo e seu sujeito. Nas línguas românicas, como o português brasileiro, o francês e o italiano, a concordância se evidencia morfologicamente, diferentemente de línguas como o inglês. Os dados em (4) fornecem mais exemplos do português brasileiro, em que ficam claros os traços-φ compartilhados pelo DP e pelo depictivo.
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(4) a. [A garota]i trabalhou [irritada]i. Traços-φ: [fem., sg.]
b. A menina comeu [os pastéis]i [frios]i. Traços-φ: [masc., pl.]
A concordância verificada na predicação secundária depictiva em diferentes línguas do mundo é um fato bastante conhecido e descrito na literatura, mas, ainda assim, menos explorado que outros temas, como constituência, aspecto/aktionsart e predicação, no sentido de que não são muitos os trabalhos que A concordância verificada na predicação secundária depictiva em diferentes línguas do mundo é um fato bastante conhecido e descrito na literatura, mas, ainda assim, menos explorado que outros temas, como constituência, aspecto/aktionsart e predicação, no sentido de que não são muitos os trabalhos que se dedicam a explicar, em detalhes, o mecanismo de concordância atuante nessas construções.4 Propostas que são mais explícitas quanto a esse quesito incluem: Legendre (1997), que defende que a predicação secundária (no francês) constitui uma projeção funcional de categoria GenderP (GenP); Ikawa (1995), para quem essa predicação constitui um sintagma predicativo AgrP; e Asada (2012), que assume que a concordância se estabelece em um sintagma PredP (cf. BOWERS, 1993). Esses três trabalhos têm em comum o fato de assumirem uma estrutura de small clause cujo sujeito é PRO, categoria que, de alguma forma, serve de intermediária para a relação de concordância entre o depictivo e o DP. No entanto, essas propostas tornam-se pouco atraentes caso se adote uma abordagem teórica minimalista que deseje eliminar o módulo PRO (HORNSTEIN, 1999, 2001) e unificar a concordância que se estabelece no nível da oração primária e na predicação secundária.5
Considerando-se o cenário descrito, Ferreira (2017) se insere nessa discussão como um trabalho de viés minimalista que lida com esses dois quesitos, buscando: (i) definir se tais construções contêm ou não uma small clause; e (ii) apresentar uma proposta de derivação para essas sentenças, detalhando o mecanismo de concordância nelas operante. Em resumo, Ferreira (2017) propõe derivações como as esquematizadas em (5), defendendo a formação de uma small clause adjunta, de categoria Asp, sem PRO como sujeito. Assume que o sistema permite o movimento lateral do DP (cf. NUNES, 1995; HORNSTEIN, 1999; entre outros) e que o movimento de um argumento para posições-θ é lícito (HORNSTEIN, 1999; entre outros).
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(5) a. [vP [vP Joãoi leu a carta] [AspP [DP João]i [Asp’ Asp [AP [DP João]i cansado ] ] ] ]
b. [VP [VP comeu a carnei] [AspP [DP a carne]i [Asp’ Asp [AP [DP a carne]i crua ] ] ] ]
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Nessa análise, o DP partilhado estabelece uma relação de concordância via Agree (CHOMSKY, 2000, 2001) com Asp na SC, valorando os traços-φ dessa sonda. Sendo Asp φ-incompleto, esse núcleo é incapaz de valorar o traço de Caso desse DP, o que permite que ele continue ativo para mover-se para [Spec, Asp] e posteriormente para a oração matriz (para [Spec, v], no caso da SC de sujeito, e para a posição de complemento de V, no caso da SC de objeto) e participar de uma nova relação de Agree com outra sonda. Vê-se, com isso, que essa proposta dispensa PRO e utiliza um mesmo mecanismo, Agree, para explicar as duas relações de concordância de que participa o DP partilhado.
Este artigo se dedica a reunir argumentos apresentados no trabalho de Ferreira (2017) em favor de uma estrutura small clause e apresentar a proposta de derivação aludida anteriormente, dividindo-se da seguinte forma. A seção 1 realiza uma rápida caracterização de construções depictivas, conforme descrito no referido trabalho. Na seção 2, discutimos a representação sintática dessas sentenças, apresentando argumentos para uma análise de small clause. Abordamos brevemente, na seção 3, o local de adjunção da SC. Na sequência, na seção 4, detalhamos a proposta de Ferreira (2017) para a derivação dessas construções. A última seção apresenta considerações finais do trabalho, pontuando questões em aberto.6
1. Características das construções de predicação secundária depictiva
Nesta seção apresentamos uma breve caracterização de sentenças com predicação secundária depictiva. Objetivamos, com esse percurso, abordar as principais propriedades dessas sentenças, com foco nos aspectos sintáticos, distinguindo-as de outras estruturas similares como recurso para ilustrar melhor suas propriedades, bem como isolar nosso objeto de estudo.
Uma das características mais notáveis das construções em apreço, além das propriedades já descritas anteriormente, é a opcionalidade, isto é, o fato de que um depictivo pode ser retirado da sentença sem que haja modificação na relação estrutural entre os demais constituintes (cf. SCHULTZE-BERNDT; HIMMELMANN, 2004, p. 65) e sem prejuízo para a boa formação da sentença (FOLTRAN, 1999, p. 43). Isso está ilustrado nos dados em (6) e (7).
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(6) a. A Rita dirigiu o carro bêbada.
b. A Rita dirigiu o carro.
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(7) a. O Pedro comprou as cenouras cruas.7
b. O Pedro comprou as cenouras.
Esse fato a respeito de predicados secundários indica que eles não integram a grade argumental do predicado primário, o que tem sido levado em consideração na literatura para analisá-los como adjuntos. O DP que controla o depictivo, por outro lado, é selecionado como argumento do verbo da oração matriz. Relações de acarretamento contribuem para essa constatação: a sentença em (7a) acarreta (7b); isso demonstra que (7ª) possui como objeto direto somente um DP (“as cenouras”), e não toda a sequência [as cenouras cruas]. Tal observação é utilizada por Rothstein (2004a) para distinguir as predicações secundárias das chamadas construções de small clause complemento, como a apresentada em (8a).8 Conforme o raciocínio da autora, vê-se que a retirada do adjetivo “interessante” de (8a) afeta a interpretação da sentença, ou seja, (8a) não acarreta (8b). Conclui-se, com isso, que o verbo “considerar” não seleciona o DP “esse problema” como objeto em (8a), mas toda a sequência [esse problema interessante].
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(8) a. Nós consideramos esse problema interessante.
b. Nós consideramos esse problema.
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O comportamento observado quanto às sentenças em (8) se relaciona com a análise, defendida por autores como Stowell (1981, 1983), de que o verbo “considerar” pode subcategorizar uma small clause, irmã de V — daí a denominação small clause complemento. O DP fica na posição de especificador da SC, conforme representado em (9), sendo estabelecida uma relação de predicação entre o DP e o adjetivo.
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(9) Nós consideramos [SC esse problema interessante].
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Nesse caso, toda a SC complemento é marcada tematicamente pelo verbo que a seleciona, e, dentro da SC, o DP recebe somente um papel-θ, do adjetivo. Os predicados secundários depictivos, diferentemente, tomam como sujeito um elemento marcado tematicamente por outro núcleo lexical, de modo que um único DP, o argumento partilhado, recebe mais de um papel temático. Isso é o que leva os predicados depictivos a serem chamados de “secundários”.9
Outro aspecto que difere as construções depictivas de construções de SC complemento é a possibilidade de substituição por uma oração encaixada com tempo finito. Conforme argumenta Foltran (1999), podem aparecer orações finitas no lugar das small clauses complementos (vide (10)), mas isso não acontece com as construções de predicação secundária depictiva (vide (11) e (12)).
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(10) a. Eu considero Maria inteligente.
b. Eu considero que Maria é inteligente.
(FOLTRAN, 1999, p. 44 e 45)
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(11) a. João chegou cansado.
b. *João chegou que é cansado.
(FOLTRAN, 1999, p. 35 e 45)
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(12) a. Pedro encontrou Maria doente.
b. #Pedro encontrou Maria que é doente.
(FOLTRAN, 1999, p. 41 e 45)
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Como dito anteriormente, os predicados secundários depictivos geralmente exprimem propriedades do tipo stage-level (atributos transitórios) e denotam uma eventualidade que está sempre ancorada no tempo expresso pela predicação primária (HIMMELMANN; SCHULTZE-BERNDT, 2005, p. 4). Nesse sentido, em (13a), o adjetivo depictivo indica que Pedro estava zangado durante o momento em que ocorreu o evento de assistir à cena, e o adjetivo depictivo em (13b) indica que as maçãs estavam frescas no momento em que se deu a eventualidade de colher as maçãs.
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(13) a. Pedro assistiu à cena zangado.
b. Ana colheu as maçãs frescas.
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A tentativa de construir sentenças de predicação secundária depictiva com adjetivos que prototipicamente veiculem uma leitura individual-level (não transitória) geralmente leva à formação de sentenças agramaticais, como argumenta Foltran (1999, p. 42), vide (14a) e (14b).10
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(14) a. *Pedro assistiu à cena inteligente.
b. *Ana colheu as maçãs vermelhas.
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Construções de SC complemento, por outro lado, tipicamente apresentam predicados individual-level, como mostra o contraste entre (15a) e (15b). Além disso, pode-se afirmar que a relação de dependência temporal observada no caso dos depictivos não se verifica nas sentenças com SC complemento.11
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(15) a. *Maria considera o livro rasgado.
b. Maria considera o livro difícil.
(FOLTRAN, 1999, p. 45)
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O fato de um predicado depictivo geralmente denotar uma propriedade transitória tem sido relacionado com a categoria desse predicado secundário. Segundo Foltran (1999, p. 45), esses predicados são preferencialmente APs, não sendo normal a ocorrência de DPs como predicados depictivos (vide (16a)), visto que DPs veiculam propriedades individual-level. Segundo a autora, exemplos como (16b) são casos isolados no PB. Ainda conforme a autora, é possível a ocorrência de gerúndio, forma neutra não flexional, como predicado secundário (vide (16c)).
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(16) a. *Pedro chegou um médico.
b. Ele voltou um herói.
c. Ela gosta de café fervendo.
(FOLTRAN, 1999, p. 33, 42 e 43)
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Outro ponto a ser mencionado nesta seção refere-se à distinção entre predicados secundários depictivos e outro tipo de predicado secundário, o chamado predicado secundário resultativo, muito produtivo em línguas como o inglês (vide (17)) (cf. ROTHSTEIN, 2006).12 Os predicados resultativos também marcam tematicamente um DP que participa de outra relação de predicação, sendo por isso classificados como “secundários”, mas a leitura que veiculam é diferente da veiculada por um depictivo: eles atribuem ao seu sujeito não uma propriedade que coincide temporalmente com a eventualidade do predicado primário, mas, sim, uma propriedade que é resultado do processo denotado pelo verbo matriz (HALLIDAY, 1967, p. 63).
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(17) a. Jane painted the housei redi.
‘Jane pintou a casa até ela ficar vermelha’.
b. Bill wiped the tablei cleani.
‘Bill flanelou a mesa até ela ficar limpa’.
(ROTHSTEIN, 2006, p. 210)
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Os predicados depictivos e resultativos também se distinguem quanto às possibilidades de orientação do predicado secundário. Os depictivos podem orientar-se para sujeito e para objeto direto, em línguas como o inglês (vide (18a) e (18b)) — sendo muito mais livre sua distribuição em outras línguas, como o esloveno (MARUŠIČ; MARVIN; ŽAUCER, 2003).
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(18) a. Johni drove the car drunki.
‘John dirigiu o carro bêbado’.
b. Mary ate the carrotsi uncookedi.
‘Mary comeu as cenouras cruas/não cozidas’.
(ROTHSTEIN, 2006, p. 210)
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Os predicados resultativos, por outro lado, somente podem orientar-se para o objeto direto, como exemplificado pelo contraste em (19).
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(19) a. John painted the housei redi.
‘John pintou a casa até ela ficar vermelha’ / ‘A casa ficou vermelha como resultado de John tê-la pintado’.
b. * Johni painted the house tiredi.
Leitura pretendida: ‘John pintou a casa até ele (John) ficar cansado’.
(ROTHSTEIN, 2006, p. 223)
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Outra característica que diferencia os predicados depictivos dos resultativos é o fato de estes poderem tomar como sujeito um DP que não integra a grade argumental do verbo da oração matriz, como ilustra (20). Trata-se de resultativos não temáticos, de acordo com Rothstein (2006), pois o DP nesses casos não recebe papel temático do verbo da oração matriz.
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(20) The audience laughed the actorsi off the stagei.
Literalmente: ‘A plateia riu os atores fora do palco’.
‘A plateia riu até tirar os atores do palco’. / ‘A plateia riu e, como resultado, os atores saíram do palco’.
(ROTHSTEIN, 2006, p. 223)
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Predicados depictivos, por sua vez, devem sempre tomar como sujeito um DP que seja argumento do predicado primário, não podendo predicar um DP que não seja partilhado com a oração matriz. Essa restrição descarta a possibilidade da existência de sentenças intransitivas como (21) no inglês, de acordo com Rothstein (2004b).
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(21) a. *John ran Maryi drunki.
Leitura pretendida: ‘John correu quando Mary estava bêbada’ (Mary estava bêbada durante o evento denotado por “John correu”).
b. *John drove Maryi drunki.
Leitura pretendida: ‘John dirigiu quando Mary estava bêbada’ (Mary estava bêbada durante o evento denotado por “John dirigiu”).
(ROTHSTEIN, 2004b, p. 60 e 70)
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Por fim, outra propriedade importante a respeito dos predicados secundários depictivos é o fato de que eles não formam um constituinte nominal com o argumento que eles predicam, o que os distingue dos chamados adjetivos modificadores atributivos. Para ilustrar esse ponto, tomemos como exemplo a sentença em (22a), extraída de Carreira (2008). De acordo com o autor, tal sentença é ambígua no português brasileiro, havendo uma leitura depictiva, equivalente a “Pedro contratou a mulher quando ela estava grávida”, e uma leitura atributiva, equivalente a uma interpretação restritiva, que veicula a ideia de que, entre um grupo de mulheres, Pedro contratou a grávida. Na primeira leitura, a depictiva, apenas o sintagma [a mulher] pode ser pronominalizado (vide (22b)); na segunda leitura, a atributiva, pode-se pronominalizar todo o sintagma [a mulher grávida] (cf. CARREIRA, 2008, p. 12 e 13). Essas considerações indicam que o adjetivo, quando é um predicado depictivo, não faz parte do sintagma nominal.13
(22) a. O Pedro contratou a mulher grávida.
b. O Pedro contratou ela grávida. (leitura depictiva)
c. O Pedro contratou ela. (leitura atributiva)
(Dados (22a) e (22b) de Carreira (2008, p. 6 e 13))
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Em resumo, vimos nesta seção as principais propriedades de uma construção depictiva: o predicado secundário depictivo é opcional, isto é, não integra a grade argumental do verbo da oração matriz, o que fundamenta análises que o tomam como adjunto; o sujeito do depictivo deve, necessariamente, fazer parte da grade argumental do verbo da oração matriz, recebendo dois papéis-θ; o depictivo veicula geralmente uma leitura stage-level; o depictivo pode orientar-se para sujeito e para objeto direto, sendo possíveis outras possibilidades de orientação translinguisticamente; o depictivo é um predicado não finito e expressa uma eventualidade ancorada no tempo denotado pela predicação primária; o depictivo não é um modificador atributivo de seu sujeito, não formando um constituinte nominal com ele. Essas propriedades os distinguem de construções de SC complemento, construções resultativas e modificadores atributivos.14
2. Representação sintática da predicação depictiva: argumentos para uma análise de SC
Uma vez apresentadas as principais características das construções depictivas, discutimos, nesta seção, a sua representação sintática. Os questionamentos relevantes a esse aspecto são os seguintes: (i) essas estruturas envolvem a formação de um constituinte small clause que engloba o depictivo e seu sujeito estrutural? (ii) se ocorre a formação de uma small clause e se ela se adjunge à oração matriz, a que categoria ela se adjunge? Esta seção dedica-se ao primeiro questionamento, respondendo a ele afirmativamente e concluindo que, no português brasileiro, a SC compreende uma categoria vazia como sujeito estrutural (rotulada provisoriamente como ec, de empty category) e o predicado adjetivo depictivo. A questão da adjunção da SC é abordada na próxima seção. Utilizamos provisoriamente o rótulo “SC” no lugar da categoria da small clause, deixando para detalhar sua categoria e estrutura interna na seção 4, bem como a natureza daquilo que estamos chamando de ec.
As evidências de Ferreira (2017) em favor da constituição de uma SC pelo depictivo e seu sujeito estrutural (uma categoria vazia) no PB baseiam-se principalmente na argumentação e em evidências utilizadas por Legendre (1997) para o francês. Apresentamos primeiramente evidências de que o depictivo e o DP manifesto não formam um constituinte (i.e., o depictivo não é um subconstituinte do DP), sendo tais evidências advindas de sentenças na voz passiva, clivagem e inversão de ordem dos constituintes. Em seguida, apresentamos evidências, ligadas a fatos da Teoria de Ligação e a sentenças com o quantificador “ambos”, de que o depictivo forma um constituinte com uma categoria vazia, seu sujeito estrutural — [ec AP].
Na seção anterior, já concluímos, por meio de evidências de pronominalização, que o DP manifesto que controla o predicado depictivo não forma um constituinte com ele. O teste da voz passiva é outra estratégia que corrobora esse entendimento. Como se pode observar, quando um adjetivo atributivo modifica um objeto direto (vide (23a)), todo o sintagma que contém o NP modificado por esse AP deve ser movido para a posição de sujeito na voz passiva (vide (23b)), de modo que o adjetivo não pode ser deixado para trás (vide (23c)). A agramaticalidade de (23c) indica que a sequência “nominal + APatributivo” forma um constituinte, de modo que não se pode mover apenas subparte do DP.
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(23) a. O Fábio comprou o carro azul. (leitura atributiva)
b. O carro azul foi comprado pelo Fábio.
c. *O carro foi comprado azul pelo Fábio.
(FERREIRA, 2017, p. 89)
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Quando se trata de construções com um adjetivo depictivo (vide (24a)), no entanto, observa-se que o adjetivo tem de ficar encalhado (vide (24b)). A tentativa de mover toda a sequência “nominal + APdepictivo” para a posição de sujeito resulta em uma frase agramatical (vide (24c)). Conclui-se desses dados que a sequência formada pelo DP manifesto e pelo adjetivo depictivo não forma um constituinte no PB.15,16
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(24)a. O Fábio comeu a carne crua. (leitura depictiva)
b. A carne foi comida crua pelo Fábio.
c. *A carne crua foi comida pelo Fábio.
(FERREIRA, 2017, p. 90)
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Outra evidência a favor dessa mesma conclusão advém da possibilidade de clivagem, que pressupõe que apenas constituintes podem ser clivados, e não apenas parte de um sintagma (cf. MIOTO; SILVA; LOPES, 2013, p. 50). Com base nesse pressuposto, conclui-se dos dados em (25) que a sequência “nominal + APatributivo” forma um constituinte, pois todo esse constituinte deve ser movido em uma estrutura de clivagem. O adjetivo, quando é um modificador atributivo, funciona como um adjunto do nome, por isso deve mover-se com ele em testes de constituência (cf. FOLTRAN, 1999, p. 27 e 28).
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(25) a. Foi o carro azul que o Fábio comprou.
b. *Foi o carro que o Fábio comprou azul. (leitura atributiva)
c. Foi o professor cansado que deu aula.
d. *Foi o professor que cansado deu aula. (leitura atributiva)
(FERREIRA, 2017, p. 91)
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Por outro lado, no caso de construções depictivas, a tentativa de clivar toda a sequência DP + APdepictivo gera sentenças agramaticais (vide (26a) e (26b)), o que indica que essa sequência não forma um constituinte no PB. No entanto, quando o DP é isolado do adjetivo depictivo na sentença clivada, o resultado são frases gramaticais (vide (26c-f)), em que não apenas o predicado secundário pode ser clivado sozinho, mas também o DP pode ser clivado, deixando para trás o adjetivo. Isso corrobora o entendimento de que o DP manifesto e o depictivo pertencem a constituintes distintos.17
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(26)a. *Foi a cenoura cozida que o João comeu.
b. *Foi o Pedro zangado que trabalhou.
c. Foi a cenoura que o João comeu cozida.
d. Foi cozida que o João comeu a cenoura.
e. Foi o Pedro que trabalhou zangado.
f. Foi zangado que o Pedro trabalhou.
(FERREIRA, 2017, p. 91 e 92)
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Por fim, a possibilidade de inversão da ordem dos constituintes fornece mais uma evidência para o que estamos argumentando nesta seção. Os dados em (27) mostram que não é possível mover isoladamente um adjetivo atributivo para fora do DP que ele integra (vide (27b)); a única mobilidade aparentemente permitida para o adjetivo é quando ele aparece entre o determinante e o nome (vide (27c)).
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(27) a. A Maria comprou o carro lindo.
b. *A Maria comprou lindo o carro.
c. A Maria comprou o lindo carro.
(FERREIRA, 2017, p. 93)
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No caso das construções depictivas, por sua vez, observa-se que, no PB, são possíveis as duas ordens mostradas em (28a) e (28b), o que é compatível com o entendimento de que o DP e o depictivo são constituintes distintos. Contudo, o adjetivo não pode aparecer entre o determinante e o nome, o que sugere que o adjetivo nesses casos é autônomo e está fora do constituinte nominal.
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(28)a. O Fábio comeu a carne crua.
b. O Fábio comeu crua a carne.
c. *O Fábio comeu a crua carne.
(FERREIRA, 2017, p. 93)
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Com essa evidência, encerramos a argumentação de que o DP manifesto não forma um constituinte nominal com o adjetivo depictivo.
Uma vez concluído que o depictivo não é subparte do DP controlador, passamos a argumentar que esse adjetivo, na verdade, forma um constituinte com uma categoria vazia, que ocupa a posição de seu sujeito estrutural — em suma, uma small clause do tipo [ec AP]. A primeira evidência que apresentamos, baseada na argumentação de Legendre (1997) para o francês, tem relação com fatos da Teoria de Ligação, que se associa ao estudo do comportamento de anafóricos, pronomes e expressões referenciais (ou expressões-R) em relação a determinados princípios (cf. HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005).18
Os exemplos em (29) e (30) ilustram construções de predicação secundária depictiva orientada para objeto direto, o que se evidencia pela concordância entre o depictivo (“satisfeita”) e o DP objeto (“a Maria”). Observa-se, em (29), que o anafórico somente pode ser correferencial com o DP objeto (vide (29a)), não com o DP sujeito da oração matriz (vide (29b)). As sentenças em (30), por sua vez, mostram que o pronome inserido no predicado secundário depictivo somente pode ser correferencial com o DP sujeito da oração matriz, não com o objeto direto.
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(29)a. O João contratou a Mariai satisfeita consigo mesmai.
b. *O Joãoj contratou a Maria satisfeita consigo mesmoj.
(FERREIRA, 2017, p. 108)
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(30)a. *O João contratou a Mariai satisfeita com elai.
b. O Joãoj contratou a Maria satisfeita com elej.
(FERREIRA, 2017, p. 108)
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De acordo com a argumentação de Legendre (1997, p. 53 e 54), propostas de representação sintática que prevejam o IP/TP como único domínio para sentenças como (29) e (30) — como a de Roberts (1988) e propostas de simples adjunção do adjetivo — não são capazes de explicar a distribuição complementar observada em sentenças como essas: se o IP/TP for o único domínio, o esperado é que os anafóricos em depictivos gerem apenas sentenças gramaticais quando ligados a algum elemento dentro desse domínio (em decorrência do Princípio A da Teoria de Ligação) e que os depictivos com pronomes gerem apenas sentenças agramaticais quando ligados a algum elemento dentro desse domínio (em decorrência do Princípio B da Teoria de Ligação).19 Esse tipo de proposta, portanto, não explica por que o anafórico é barrado em (29b) e o pronome, permitido em (30b), de acordo com esse raciocínio.
Contudo, a proposta de formação de uma small clause que compreenda o depictivo e uma categoria vazia como sujeito, como as mostradas em (31), explicaria os fatos observados em (29) e (30), desde que se considere a small clause como um domínio de ligação para anafóricos e pronomes.20 Nesse caso, estipulando-se a coindexação da ec com o DP objeto, vemos que a sentença em (31a) é agramatical com o pronome porque dessa forma há violação do Princípio B — uma vez que o pronome estaria ligado dentro do domínio — e é gramatical com o anafórico pela razão contrária — o anafórico está ligado em seu domínio, respeitando-se o Princípio A. Em (31b), a sentença com o pronome é gramatical, porque aí ele não está ligado em seu domínio (respeitando-se o Princípio B), mas a sentença com o anafórico é agramatical, porque este não está ligado em seu domínio, o que causa violação do Princípio A.21
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(31) a. O João contratou a Mariai [SC eci satisfeita consigo mesmai /*com elai].
b. O Joãoj contratou a Mariai [SC eci satisfeita com elej /*consigo mesmoj].
(FERREIRA, 2017, p. 108)
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Outra evidência a favor de uma SC com uma categoria vazia como sujeito nas construções depictivas advém do comportamento da expressão anafórica “uns... os outros” inserida em predicados depictivos, aplicada por Ferreira (2017) ao português brasileiro a partir das considerações de Legendre (1997) sobre essa expressão no francês (les uns... les autres). Primeiramente, assume-se, com Legendre (1997, p. 55), que o fato de essa expressão concordar com o seu binder em gênero e número revela morfologicamente se os princípios da Teoria de Ligação estão sendo violados ou não. A partir disso, consideremos os dados em (32) e (33): neles verificamos que a expressão anafórica deve concordar em gênero e número com o predicado secundário e com o DP ao qual o predicado secundário se orienta; quando não há concordância, a frase resulta agramatical (vide (32b) e (33b)).
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(32) a. As meninas vão comer os feijões sentadas umas atrás das outras.
b. *As meninas vão comer os feijões sentadas uns atrás dos outros.
(FERREIRA, 2017, p. 115)
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(33) a. As meninas vão comer os feijões crus uns após os outros.
b. *As meninas vão comer os feijões crus umas após as outras.
(FERREIRA, 2017, p. 115)
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Novamente, observa-se que esse tipo de diferença não é explicado por análises que considerem o IP/TP como o único domínio para os binders “as meninas” e “os feijões” e os respectivos anafóricos, como propostas de simples adjunção do depictivo (cf. LEGENDRE, 1997, 56). Mais especificamente, se os binders e os anafóricos estão no mesmo domínio, não deveria haver problemas de ligação, de acordo com Legendre (1997). Por outro lado, o contraste estará explicado se considerarmos as estruturas em (34) e (35), em que a SC, com uma categoria vazia como sujeito, constitui um domínio para o anafórico.22
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(34) a. [As meninas]j vão comer [os feijões]i [SC ecj sentadasj [umas atrás das outras]j].
b. *[As meninas]j vão comer [os feijões]i [SC ecj sentadasj [uns atrás dos outros]i].
(FERREIRA, 2017, p. 115)
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(35) a. As meninas vão comer [os feijões]i [SC eci crusi [uns após os outros]i].
b. *[As meninas]j vão comer [os feijões]i [SC eci crusi [umas após as outras]j].
(FERREIRA, 2017, p. 115)
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Nesse caso, a agramaticalidade de (34b) e (35b) se explicaria devido à hipótese de a SC constituir um domínio, isto é, um Complexo Funcional Completo (cf. CHOMSKY; LASNIK, 1995) que pode satisfazer as condições de ligação da expressão anafórica e que contém um binder potencial para esse anafórico, a ec. Uma vez que, nessas sentenças, os binders dos anafóricos estão fora do domínio (fora da SC), ocorre a violação do Princípio A da Teoria de Ligação, do que resulta sua agramaticalidade.
A última evidência que apresentamos aqui diz respeito ao comportamento do quantificador “ambos” no português brasileiro. Como se observa nos dados em (36) e (37), o chamado fenômeno da flutuação à direita pode ocorrer quando o quantificador se refere ao sujeito da sentença — podendo “ambos” ficar encalhado, nos termos de Sportiche (1988), nesse contexto (vide (36b)) —, mas não quando em referência ao DP objeto (vide (37b)).23
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(36)a. Ambos os alunos fizeram perguntas interessantes.
b. Os alunos fizeram ambos perguntas interessantes.
((36a) de Ferreira (2017, p. 123) e (36b) de Lacerda (2012, p. 51))
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(37) a. O João comeu ambas as carnes.
b. *O João comeu as carnes ambas.
(FERREIRA, 2017, p. 123)
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No entanto, em contexto de predicação secundária depictiva orientada para objeto direto, a aparente flutuação à direita de “ambos” gera uma sentença gramatical (vide (38b)).
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(38) a. O João comeu ambas as carnes cruas.
b. O João comeu as carnes ambas cruas.
(FERREIRA, 2017, p. 123)
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O contraste entre (37b) e (38b) é explicado em Ferreira (2017) assumindo-se a hipótese, nas linhas do proposto em Legendre (1997, p. 59 e 60) para sentenças similares com o quantificador tous (‘todos’) no francês, de que não ocorre o movimento de “ambas” à direita do objeto em (38b), mas um encalhe do quantificador, nos termos de Sportiche (1988), sendo a “flutuação” à direita do quantificador apenas uma ilusão. Tal análise é possível se assumirmos que (38b) tem a estrutura mostrada em (39), na qual se supõe uma small clause adjunta com uma categoria vazia como sujeito, de modo que o quantificador “ambas” fica encalhado nessa small clause em que é gerado. Nesse caso, assumindo-se que a categoria vazia represente um vestígio ou uma cópia apagada, ocorreria, na verdade, um movimento à esquerda do DP aí originado.24
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(39) O João comeu as carnesi [SC ambas + eci cruas].
(FERREIRA, 2017, p. 124)
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A estrutura em (39) indica haver um constituinte formado pelo quantificador, pelo sujeito ec e pelo depictivo, o que é corroborado pelos dados em (40). Observa-se, por fim, que, se a categoria ec for um vestígio ou cópia do DP, isso estará em conformidade com a generalização de Sportiche (1988) de que um quantificador flutuante deve poder aparecer adjacente a uma posição de vestígio do DP (cf. GUERRA VICENTE, 2006, p. 5).
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(40)a. Os meninosi fizeram a tarefa [SC ambos + eci cansados].
b. As pizzasi foram comidas [SC ambas + eci cruas].
(FERREIRA, 2017, p. 124)
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Com isso, conclui-se a argumentação de que as construções depictivas contêm uma small clause adjunta formada por uma categoria vazia como sujeito e pelo depictivo. Essa hipótese permite explicar os fatos do PB discutidos nesta seção.
3. Sobre o local e a adjunção da small clause depictiva
Como dito anteriormente, uma outra questão a ser respondida a respeito da representação sintática das construções depictivas diz respeito ao local de adjunção da small clause depictiva — isto é, se ela se adjunge ao CP, ao TP, ao vP ou ao VP, considerando-se as projeções delineadas em Chomsky (2000). Por razões de espaço, não vamos nos estender aqui em nossa argumentação, limitando-nos a indicar brevemente que, em Ferreira (2017), as SC de objeto direto adjungem-se ao VP da oração matriz, ao passo que as SC de sujeito se adjungem ao vP.
Quanto à SC de objeto, uma das evidências de que ela se adjunge ao VP no PB advém do fato de que o depictivo de objeto acompanha o verbo quando ocorre anteposição do VP, conclusão extraída de Foltran (1999, p. 86). Quanto à SC de sujeito, discutem-se em Ferreira (2017), a partir de Foltran (1999), evidências de que o depictivo de sujeito não se adjunge ao VP, advindas de testes de anteposição do VP, pseudo-clivagem, fatos referentes à extraposição de objeto e considerações sobre a posição de advérbios de modo. Apesar de Foltran (1999) concluir que o depictivo de sujeito se adjunge ao IP, assume-se, em Ferreira (2017), que a adjunção destes depictivos ocorre no nível de vP, projeção imediatamente acima do VP.25
4. Dericação das construções depictivas de sujeito e de objeto direto no PB
Passamos agora a detalhar a estrutura interna da small clause depictiva e a derivação das construções depictivas de sujeito e de objeto, conforme Ferreira (2017). Essa proposta está inserida dentro do quadro minimalista proposto a partir de Chomsky (2000, 2001), especialmente quanto ao mecanismo de Agree, mas com algumas modificações essenciais com relação ao entendimento acerca de movimento de DPs e atribuição de papel-θ, como veremos adiante.
Primeiramente, observamos que Ferreira (2017) assume que, nas SC depictivas, o DP é gerado no interior de uma projeção lexical AP, recebendo nessa projeção um papel-θ do adjetivo, via Merge. Esse sintagma adjetival é, então, selecionado por um núcleo aspectual Asp, categoria considerada defectiva por ser φ-incompleta, nos termos de Chomsky (2000, 2001), por possuir apenas traços de gênero e número, e não de pessoa. Supõe-se que Asp possui um traço [EPP], que alça para seu Spec o DP gerado no AP. A estrutura que resulta dessa combinação entre uma projeção lexical AP e uma projeção funcional AspP está ilustrada em (41).
No que se refere à estrutura em (41), cabe destacar que a hipótese de a small clause — aqui entendida como toda a projeção AspP — conter uma categoria aspectual Asp teria relação com a propriedade, descrita anteriormente, de que a eventualidade denotada pela predicação secundária se ancora na eventualidade denotada pela oração primária, o que, por sua vez, teria relação com a hipótese de que a predicação secundária prescinde de um TP.26 Acrescenta-se também que aquilo que vínhamos chamando de ec até o momento, o sujeito estrutural da SC, é entendido como um DP que eventualmente irá mover-se e deixar uma cópia nessa posição.
Além disso, Ferreira (2017) assume que os movimentos de DPs nas construções depictivas, como o do DP em [Spec, A] para [Spec, Asp] em (41), são entendidos como simples aplicações de Copy + Merge (BOECKX; HORNSTEIN; NUNES, 2010), e não como fruto de uma operação independente Move (CHOMSKY, 2000). Isso possibilita instâncias do chamado movimento lateral (NUNES, 1995; entre outros), isto é, cópia de um elemento α de determinado objeto sintático K e Merge desse elemento em outro objeto sintático, independente e separado de K (BOECKX; HORNSTEIN; NUNES, 2010, p. 86). É esse tipo de movimento que ocorrerá quando o DP sair da small clause para ocupar uma posição na oração matriz.27
Ademais, com relação a papéis temáticos, Ferreira (2017) assume, com Hornstein (2001), a hipótese de que um argumento pode receber mais de um papel-θ e que papel-θ é um traço formal a ser checado, de modo que um DP pode mover-se para uma posição-θ com o intuito de checar esse traço (HORNSTEIN, 1999, p. 79; HORNSTEIN, 2001, p. 79). No caso das construções em apreço, o DP partilhado receberá seu segundo papel-θ quando mover-se para uma posição temática na oração matriz. Esses pressupostos são coerentes com a hipótese de que movimento se reduz a aplicações de Copy + Merge: conforme Nunes (2009, p. 5), se papéis-θ são atribuídos durante a derivação mediante Merge, e se movimento envolve Merge, então a possibilidade de atribuição de papel-θ por meio de movimento decorre naturalmente dessas assunções.
Feitas essas considerações, tratemos do passo a passo da derivação das sentenças com predicado secundário depictivo. Comecemos pela construção depictiva de sujeito em (42).
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(42) O João leu a carta cansado.
(FERREIRA, 2017, p. 184)
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Como dito anteriormente, a derivação começa com a formação da small clause depictiva. O DP [O João] é retirado da Numeração e ocorre Merge entre ele e o adjetivo. O DP recebe do adjetivo um papel-θ e, depois disso, forma-se o AP. O núcleo Asp, então, é retirado da Numeração e faz Merge com o AP. Observa-se que o DP possui um traço não interpretável de Caso e entra na derivação com um conjunto de traços-φ interpretáveis (para gênero, número e pessoa), enquanto Asp entra na derivação com um conjunto incompleto de traços-φ e com um traço [EPP]. Os traços-φ não interpretáveis de Asp e os traços-φ interpretáveis compatíveis do DP estabelecem, assim, uma relação sonda-alvo, uma vez que os traços relevantes do DP (alvo) estão no domínio de c-comando dos traços-φ de Asp, que constituem uma sonda, o que garante que Agree ocorra (CHOMSKY, 2000, 2001). Essa relação sonda-alvo está indicada em (43a). Asp, no entanto, é uma sonda defectiva, pois tem um conjunto incompleto de traços-φ, porque não possui o traço de pessoa. Isso significa que Asp é incapaz de valorar e apagar o traço não interpretável de Caso do DP (CHOMSKY, 2000, p. 125); contudo, na relação de concordância com os traços-φ do DP (masculino, singular, 3ª pessoa), o conjunto de traços-φ de Asp é valorado (como masculino e singular). O DP, então, move-se para [Spec, Asp], satisfazendo o traço [EPP] de Asp e deixando uma cópia em sua posição de origem, representada aqui como vestígio apenas por uma questão de comodidade. Nesse momento, a derivação atinge o ponto ilustrado em (43b).
A derivação prossegue com o movimento e a adjunção do adjetivo (melhor dizendo, sua raiz) para o núcleo Asp, momento em que, de acordo com Ferreira (2017), o adjetivo adquire a morfologia de concordância relevante mediante os traços-φ valorados de Asp (masculino, singular); nota-se que, nesse sentido, a relação entre o adjetivo, núcleo lexical, e Asp, núcleo funcional, é semelhante à que ocorre no ato de movimento e adjunção de V-para-T na derivação de uma oração.28 Observa-se que, nesse momento, o traço de Caso do DP ainda não foi valorado, o que permite que ele continue ativo para realizar movimento para uma posição-A e participar de outras relações de concordância (CHOMSKY, 2000).
Enquanto a small clause depictiva é construída, forma-se paralelamente a oração matriz, que contém o verbo “ler”. A derivação segue normalmente: ocorre Merge entre o DP [a carta] e o verbo “ler”, e esse DP, argumento interno, recebe um papel temático; forma-se o VP, que, então, faz Merge com v; o conjunto completo de traços-φ de v constitui uma sonda que se relaciona com o conjunto de traços-φ interpretáveis do DP, compatíveis com a sonda. O DP e o v, então, entram em uma relação de Agree, de modo que os traços não interpretáveis da sonda são valorados, bem como o traço de Caso do DP (valorado como acusativo), o que o torna inativo para movimentar-se novamente. O núcleo v tem também outro papel temático, que deve atribuir a um argumento externo, em [Spec, v]. Contudo, o DP argumento interno não pode se mover para receber outro papel; nesse momento, então, a necessidade de v atribuir/checar papel-θ motiva o movimento do DP [O João] de dentro da small clause AspP para a posição de [Spec, v] — uma instância de movimento lateral, como exemplificado em (44).
Após o movimento do DP [O João] de dentro da small clause para [Spec, v], local onde ele recebe o segundo papel-θ, forma-se o vP da oração matriz e ocorre o Merge de AspP com vP: por meio desse Merge, a small clause torna-se um adjunto de vP. É importante ressaltar que o Merge de AspP ocorre depois do movimento do DP [O João] para fora da SC, ou seja, antes de a small clause se tornar um adjunto, pois isso garante que não haja violação de extração de adjuntos, entendidos como ilhas (cf. BOECKX; HORNSTEIN; NUNES, 2010, p. 93). Após a adjunção da small clause, a derivação continua normalmente: ocorre Merge entre T e vP; o conjunto de traços-φ de T atua como uma sonda que estabelece Agree com o conjunto de traços-φ interpretáveis do DP [O João], que atua como alvo; os traços-φ de T são valorados; como T é φ-completo, o traço de Caso desse DP é valorado (como nominativo); o movimento do DP [O João] para [Spec, T] satisfaz [EPP] de T; a derivação termina com a formação do CP.29
Passemos agora à derivação das construções depictivas de objeto direto, vide (45) (cf. FERREIRA, 2017, p. 193).
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(45)O João comeu [a carne]i [crua]i.
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A derivação dessa sentença começa da mesma forma que a derivação anterior: com a formação da small clause. O DP [a carne] recebe um papel-θ do adjetivo por meio de Merge, formando-se o AP. Ocorre, então, o Merge entre o núcleo Asp e o AP, o que resulta no passo em (46a). O conjunto de traços-φ não interpretáveis de Asp atua como uma sonda para o conjunto de traços-φ interpretáveis do DP, o alvo, ocorrendo Agree entre eles. Os traços-φ de Asp são valorados, mas Asp, por ser φ-incompleto, não valora o traço de Caso do DP, então o DP pode mover-se para [Spec, Asp] para apagar o [EPP] de Asp. O adjetivo se adjunge a Asp e a derivação atinge o ponto em (46b).
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(46)a. [AspP Asp [AP [DP a carne] [crua] ] ]
b. [AspP [DP a carne]j [Asp’ cruai + Asp [AP tj ti ] ] ]
(FERREIRA, 2017, p. 193)
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Enquanto isso, a derivação da oração matriz ocorre paralelamente. O verbo deve atribuir um papel temático interno, o que pode ser feito pelo Merge de um elemento novo na Numeração ou pelo movimento de um elemento. No caso dessas sentenças, ocorrerá o movimento (cópia) do DP [a carne] de dentro da SC para a posição de complemento de V, uma instância de movimento lateral.30 Nessa posição, o sintagma [a carne] recebe o seu segundo papel-θ. Depois disso, a small clause atinge o passo em (47a). Em sequência, ocorre o Merge de v com o VP formado, com a subsequente relação de Agree entre os traços-φ não interpretáveis de v (sonda) e os traços-φ do DP alvo. Em seguida, ocorre o Merge de [O João] em [Spec, v], posição em que esse DP recebe um papel-θ externo. Atinge-se o estágio apresentado em (47b).
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(47) a. [VP [VP comeu a carnej ] [AspP tj crua ] ]
b. [vP O João [v’ v [VP [VP comeu a carnej ] [AspP tj crua ] ] ] ]
(FERREIRA, 2017, p. 194)
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Após isso, a derivação prossegue normalmente, com o Merge de T com vP, a relação de Agree entre os traços-φ de T e os traços-φ do DP [O João], a valoração do traço de Caso do DP [O João] (nominativo), a valoração dos traços-φ não interpretáveis de T e o movimento de [O João] para [Spec, T], satisfazendo-se [EPP] de T. A formação do CP conclui a derivação.
5. Considerações finais
Como vimos neste artigo, a proposta de derivação das construções depictivas no PB apresentada em Ferreira (2017) e aqui resumida possui a vantagem de dispensar PRO e unificar o tratamento da concordância verificada no âmbito da predicação primária e da predicação secundária por meio de um único mecanismo, Agree. Os passos futuros da pesquisa incluem investigar o impasse identificado quanto à derivação das SC de objeto (a violação do princípio Merge-over-Move) e estender a análise para outras possibilidades de orientação do depictivo no português brasileiro.