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Experience Report

Watjuho Ja’a: reclaimation of language and land in the Manoki nation

Bernat Bardagil

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https://orcid.org/0000-0002-1190-7164

Cledson Dário Kajoli

Povo Manoki

Edivaldo Lourival Mampuche

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Keywords

Mỹky
Revitalization
Reclamation
Territory
Isolate language

Abstract

The Manoki people (also known as Iranxe) are an indigenous nation of the Juruena valley, in the state of Mato Grosso. The language spoken by the Manoki is a variety of Mỹky, an isolate language. This article aims to present the situation of the Manoki nation and to discuss the strategies that the Manoki are adopting to start a long-term process to reclaim their ancestral language for the younger members of the community, in parallel to a process of reclamation and defense of the ancestral territory of the Manoki people.

Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar uma série de iniciativas para a retomada da língua própria entre os Manoki, um povo indígena do vale do Juruena, no noroeste do estado de Mato Grosso. Hoje em dia, os Manoki se encontram em um momento de uma importante expansão da identidade manoki tanto geográfica como cultural. O povo Manoki começou em 2019 um processo de reaprender a língua manoki, falada hoje em dia por uns poucos anciões da comunidade. Essa retomada da própria língua se articula na criação de um coletivo para o estudo da língua manoki, o Coletivo Watjuho Ja’a “juntos pela língua”. Esse coletivo se ocupa da articulação de várias atividades centradas na revitalização da língua manoki, incluindo uma escola de língua com atividades periódicas. A partir do coletivo se organizam encontros de estudo, se elaboram materiais para aprender aspectos variados da língua, e também está se promovendo uma iniciativa extensiva de documentação da língua manoki.

Paralelamente ao ressurgimento da língua por parte dos jovens Manoki, o território se configura como uma parte complementar da retomada da identidade manoki. A TI Manoki, aguardando a homologação final, engloba o território originário desse povo. O povo Manoki também se mobiliza para estar presente nessa terra que para eles tem uma importância crucial por vários fatores.

Na seção 2 do artigo apresentamos a relevância da história do povo Manoki na situação linguística e territorial atual. A seção 3 foca no território, e a seção 4 aprofunda os aspectos da língua. A seção 5 apresenta as estratégias de retomada linguística e territorial, e a seção 6 serve de conclusão.

1. Uma história de luta

Os Manoki são uma nação indígena soberana do vale do Juruena. Em termos do estado brasileiro, se encontram no oeste do Mato Grosso, no município de Brasnorte. Hoje em dia eles moram na margem ocidental do rio Cravari, afluente do río do Sangue. Sabemos, pela história oral do povo Manoki, que eles saíram de um mundo que se encontrava dentro de uma grande pedra, junto com as outras nações vizinhas, quando o pica-pau quebrou aquela pedra. Entre aquele momento e o início do século XX, os Manoki se encontraram vivendo na área delimitada na margem ocidental pelo rio Cravari, um afluente do Sangue, e na margem oriental pelo mesmo rio do Sangue.

Os Manoki encontraram membros do Brasil neocolonial seguramente no final do século XIX, sendo chamados de Iranche pelos Paresí e pelos brasileiros. Até onde sabemos, isso aconteceu em condições horríveis: eles foram brutalmente atacados e mortos por seringueiros que se mudaram para a área do rio Juruena no final do século XIX. Apenas alguns anos depois, em 1907, o explorador Cândido Rondon ouviu falar sobre os Manoki por parte dos Paresí, uma nação vizinha de língua aruak com a qual os Manoki tinham relações pacíficas. A primeira menção atestada de um grupo de língua mỹky foi na história de um ataque particularmente brutal contra os Manoki por parte de um seringueiro local. A violência dos seringueiros e outros colonos brasileiros na vanguarda da fronteira foi tristemente a norma no oeste do Mato Grosso desde a época do primeiro boom da borracha, no final do século XIX. Esse episódio foi recolhido por Rondon e apresentado em uma palestra no Rio de Janeiro em 1910:

“O tristíssimo acontecimento a que aludo passou-se pouco tempo depois de se ter estabelecido Antônio Pinto com os seus camaradas nos seringais de Corecê-inazá. Nada se deve temer da índole pacífica e até mesmo tímida dos Iranche. Mas, apesar disso, o truculento seringueiro entendeu que era necessário expeli-los das proximidades do ponto em que se estabelecera; e como por ali existisse uma aldeia, assentou dar-lhe cerco, com o auxílio dos camaradas, todos armados de carabinas. Pela madrugada, ao recomeçar a cotidiana labuta daquela misérrima população, a celerada emboscada rompeu fogo, abatendo os que primeiro saíram das casas para o terreiro.” (RONDON [1910] 1946[1], p.88)

Entre esse momento, mais de um século atrás, e hoje, o povo Manoki sofreu mais violência e também doenças contagiosas espalhadas pelos brasileiros que se mudavam progressivamente para aquela área. Com uma população reduzida a pouco mais de 50 pessoas, eles buscaram refúgio em uma missão jesuíta que "pacificara" outros povos indígenas do vale de Juruena, a missão de Utiariti.

O que se segue é uma história que infelizmente é bastante familiar: um internato neocolonial, a proibição de falar sua língua e viver sua vida espiritual, e uma interrupção acentuada da sua transmissão para a geração mais jovem. No final da década de 1960, a missão de Utiariti foi fechada e os grupos indígenas foram enviados de volta às terras deles. Um capítulo de fecha, mas outro começa; e é grosso. Hoje, no século XXI, os Manoki ainda lutam pelos seus direitos fundamentais e pela sua soberania, e as suas terras ainda estão ameaçadas pela invasão violenta por parte dos colonos vizinhos.

2. A terra dos Manoki

O território original dos Manoki, pelo menos no século XX, fica entre o rio do Sangue e o seu afluente, o rio Cravari. Esta é uma terra de rios sinuosos e florestas densas, em uma transição entre o cerrado e a floresta fluvial mais ao norte. O mapa a seguir mostra as localizações estimadas dos povos da bacia do Juruena no século XIX.

Figure 1. Mapa 1. Povos do Juruena no século XIX. Fonte: OPAN.

A localização apresentada aqui para os Manoki é consistente com as memórias da história oral dos anciãos Manoki, e também com as primeiras descrições disponíveis. Uma das primeiras menções aos Manoki, em um relatório de 1908 da expedição de Rondon pelo tenente João Salustiano Lyra, afirma que "[continuamos indo para o norte] nas trilhas deixadas pelos índios, que ligam as várias manchetes na margem esquerda do Cravari. Na verdade, até agora a exploração desse rio estava limitada à sua margem esquerda, já que toda a margem direita ainda é ocupada pelos índios Iranxe, que sempre resistiram a qualquer invasão" (Rondon [1910] 1946). Como se observa no mapa, o rio Cravari se junta a outro rio à sua direita: o rio do Sangue. Acredita-se que esse era o limite oriental das populações de língua mỹky, sua margem direita habitada por um grupo inimigo, o povo de língua jê conhecido como Tapayuna ou Kajkwakratxi.

Após o encerramento da missão de Utiariti, a missão local e as ONGs católicas que dela surgiram, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e a OPAN (Operação Amazónia Nativa), tomaram as medidas necessárias para garantir algumas terras para que os vários grupos indígenas voltarem para a vida de aldeia nos seus territórios. Também se realizou um esforço para entrar em contato com grupos isolados, o que levou a um contato pacífico com os Enawene Nawe (aruak) em 1974 e, apenas alguns anos antes, em 1971, com os Mỹky na margem direita do rio Papagaio. Estes eram um pequeno grupo de falantes de Mỹky, com um dialeto diferente da mesma língua isolada falada pelos Manoki.

Infelizmente, a urgência da situação precária das comunidades indígenas e a sensação do rápido avanço da fronteira agrícola levaram na época a uma demarcação pouco ideal. Os Manoki receberam a pequena TI Irantxe na margem esquerda do Cravari. Na década de 1990, o povo Manoki e as ONGs que os apoiavam iniciaram uma solicitação para demarcar uma parte mais extensa de território, na sua terra original pré-Utiariti, entre os rios Cravari e Do Sangue. A situação desta terra, a TI Manoki, ainda hoje não está resolvida.

Figure 2. Mapa 2. Localização das TI Irantxe e TI Manoki. Fonte: ISA.

Hoje em dia, os Manoki se referem à TI Manoki como a "terra nova”, sinalizando que a sua delimitação e demarcação oficial chegaram mais tarde do que as da TI Irantxe. No entanto, essa é a terra mais antiga, e precisamente é o território ao leste do rio Cravari, o local da TI Irantxe, o que foi uma mudança do entorno natural tradicionalmente habitado pelos Manoki. Para uma população de pouco mais de 100 Manoki na época, a TI Irantxe seguramente pareceu ser um território mais do que suficiente para as necessidades do povo. Mas não somente a população cresceu, a paisagem nesta região também é diferente. Se nos lembramos do relato do tenente Lyra, os Manoki se mantinham à direita dos Cravari. Esta é uma área com floresta mais densa, onde eles tinham acesso aos riachos que chegam ao do Sangue e às espécies vegetais e animais que ali vivem.

3. A língua dos Manoki

Os Manoki falam uma língua conhecida como mỹky. Trata-se de uma língua isolada, falada atualmente por dois grupos indígenas, os Manoki e os Mỹky. Como língua isolada, o mỹky não tem relação com as línguas dos povos indígenas vizinhos: o paresí e o enawene nawe (aruaque), o rikbaktsa (macro-jê), o kayabi e o kawahiva (tupi), ou as línguas nambiquara.

Além dos Manoki, existe uma comunidade separada de falantes da língua mỹky, chamados também Mỹky. Com um dialeto diferente e uma história de contato diferente, eles moram não muito longe da terra dos Manoki, na margem direita do rio Papagaio, na TI Menku. Esse grupo de falantes de mỹky permaneceu se afastando da fronteira agrícola mato-grossense, evitando a violência que aumentava a cada década. Finalmente os Mỹky foram contatados em 1971 por uma expedição conjunta de Manoki e missionários (LISBOA 1979). Tratava-se de um grupo de 23 pessoas, que imediatamente reconheceram os Manoki como parentes do mesmo povo.

A língua dos Manoki foi descrita superficialmente por Moura (1957), o que foi seguido por uma descrição já mais profunda, porém breve, dez anos mais tarde por Meader (1967). Monserrat (2000, 2010) apresenta uma descrição mais detalhada da língua, a qual se centra na variedade falada pelos Mỹky mas também inclui elementos da variedade manoki.

Trata-se de uma língua polissintética, com 11 posições diferenciadas de sufixos, porém não ocupadas de forma simultânea. A ordem de constituintes é flexível com uma tendência importante a ser SOV. De forma consistente com a linearização à direita do núcleo do sintagma, a língua apresenta também posposições. Os argumentos carregam marcação de definição e classe nominal, mas não de caso gramatical.

Fonologicamente, a língua apresenta 19 consoantes, apresentadas na tabela 1. Destaca uma série constrastiva palatalizada.

Figure 3. Tabela 1. Fonemas consonânticos do mỹky.

Destaca também o número de fonemas vocálicos, apresentados na tabela 2. Com sete qualidades vocálicas, tanto a nasalidade como o comprimento são contrastivos. Na série nasal a dimensão baixa é neutralizada.

Figure 4. Tabela 2. Fonemas vocálicos do mỹky.

A diferença mais proeminente entre os dialetos dos Manoki e dos Mỹky ocorre na fonologia segmental. A variedade dos Manoki apresenta um fonema lateral /l/ que a variedade dos Mỹky não tem. Essa diferença, como exploramos ao final da presente seção, seguramente já existia há um século, quando as duas comunidades perderam o contato entre elas por causa de forças externas. A queda diacrônica do /l/ no mỹky falado pelos Mỹky comportou contatos entre segmentos vocálicos que anteriormente não eram contíguos, o que na sua vez comportou processos de assimilação vocálica. Vogais homorgânicas resultaram em uma vogal longa do mesmo valor. Vogais altas em contato se assimilaram, e vogais não altas também, como é ilustrado em (1-3).

(1) a. Manoki b. Mỹky

/kalatali/ /ka:tai/

“borboleta” “borboleta”

(2) a. Manoki b. Mỹky

/karɨli/ /karɨ:/

“sucurí” “sucurí”

(3) a. Manoki b. Mỹky

/mãlẽna / /mããna/

“bonito” “bonito”

Embora não pareça um fenômeno muito alterador, a queda do /l/ diacronicamente na variedade dos Mỹky provoca diferenças importantes na morfofonologia da língua, pois vários dos morfemas da palavra verbal polissintética apresentam /l/ na variedade dos Manoki. A fala dos Mỹky das gerações mais novas, com queda muito habitual de alguns dos sufixos verbais, aumenta ainda mais a diferença de forma entre enunciados equivalentes nas duas variedades. Isso é exemplificado com o sufixo de futuro /lo/~/o/ e o sufixo de interlocutores iguais /nĩ/ em (4).2

(4) a. Manoki b. Mỹky

[tolopaanĩ] [to:pa]

/to-lo-pa-nĩ/ /to-o-pa/

ir-fut-1sg-ig ir-fut-1sg

“Eu vou ir embora.” “Eu vou ir embora.”

Os anciões das comunidades Manoki e Mỹky falam da existência de vários grupos que eram considerados diferentes na época pré-contato com os brasileiros. Um desses grupos teria sido conhecido como os akomĩã,3 ou gente do tucano. Em uma descrição feita nos anos 50 dos vários grupos de Manoki (chamados Iranche naquela época) que se juntaram em Utiariti é mencionado que “cada grupo tem uma pronúncia diferente nas palavras” (MOURA 1957).

As evidências de variação dialetal além do grupo dos Mỹky hoje em dia são poucas. Porém, elas apoiam a ideia que existiram vários grupos de língua mỹky que falavam variedades diferentes da língua. Alguns desses grupos seguramente foram exterminados como consequência da violência dos primeiros brasileiros a penetrar na zona; outros foram na missão de Utiariti e se juntaram nos Manoki atuais, e mais outro grupo se afastou e permaneceu isolado até 1971.

4. Retomada de língua e terra

As gerações mais jovens dos Manoki estão realizando um esforço especial para se reconectar com o passado de seu povo e reformulá-lo no presente. Independentemente da intenção, as pessoas que dirigiam a missão em Utiariti cometeram um genocídio cultural, roubando ao povo Manoki partes muito importantes de sua língua, suas tradições e sua vida espiritual. Não deixando isso definir quem eles são, quando voltaram para sua terra continuaram falando e honrando os espíritos e os antepassados. Na última década, alguns Manoki mais jovens recuperaram cada vez mais aspectos da essência manoki. Aprendendo danças e músicas, tocando a flauta tradicional, tecendo redes com fio de algodão e, é claro, falando a língua e se reconectando com a terra onde moravam os antepassados.

4.1. Juntos pela língua

Hoje em dia a língua dos Manoki, isso é, a língua mỹky na variedade falada pelos Manoki, tem seis falantes nativos fluentes. Mais três faleceram nos poucos meses anteriores à escrita deste artigo. A comunidade Manoki está consciente da urgência e da importância de segurar os conhecimentos desses anciões, conhecimentos que não se limitam aos aspectos gramaticais da língua, mas que também se estendem a uma série de informações tradicionais e da história oral do povo Manoki que se encontram codificadas na língua.

Em 2019 três tipos de agentes coalesceram para criar um coletivo de aprendizado e estudo da língua manoki, o Coletivo Watjuho Ja’a (“juntos pela língua”). Esses tipos de agentes são representados pelos três coautores do presente artigo: Bernat Bardagil como pesquisador linguista, Edivaldo Lourival Mampuche como professor de escola na comunidade Manoki, e Cledson Dário Kajoli como jovem aluno interessado na recuperação da língua dos avôs.

No núcleo do Coletivo Watjuho Ja’a se encontra uma turma de pessoas comprometidas com a aprendizagem da língua manoki até atingir uma fluidez comunicativamente autônoma, embora seja com elementos incorretos e inexatos. Nesse quadro, o Coletivo Watjuho Ja’a existe para dar respostas concretas a problemas concretos. Em particular, podemos resumir a missão desse coletivo em três pontos:

1. Condensar um grupo de Manoki interessados e comprometidos com a língua

2. Articular agentes de fora (p.e. pesquisador linguista) com a comunidade

3. Identificar claramente uma série de iniciativas a favor da língua

As necessidades linguísticas principais da comunidade Manoki são duas: documentar a língua e os conhecimentos dos falantes, e aumentar os conhecimentos da língua entre os mais jovens. Curiosamente, esses dois elementos coincidem até um ponto com os objetivos clássicos da pesquisa linguística de trabalho com comunidades indígenas: fazer um trabalho de documentação da língua (criar um corpus de textos), e um trabalho de descrição (que culmina em uma gramática descritiva). Porém, a atuação mais adequada para a comunidade não é o procedimento típico do trabalho linguístico, que consistiria em passar um bom tempo reunindo material primário da língua, para depois passar ainda mais tempo compreendendo-o, o que acabaria resultando em um produto descritivo da língua mais ou menos completo.

O procedimento adotado consiste em fragmentar e inverter esse processo. As necessidades dos aprendizes da língua determinam a orientação do trabalho de documentação e descrição, por âmbitos gramaticais (semi)autônomos. Durante o processo de descrição e ensino-aprendizagem de um fenômeno, o material textual é criado. Com o passo do tempo, o corpus de conhecimentos e materiais vai aumentando, e o resultado é que a gramática descritiva é a última coisa da qual o processo se ocupa, mas ela é um resultado secundário do processo de aquisição da língua.

Em termos do aprendizado da língua, os membros do Coletivo Watjuho Ja'a usam a metáfora de um grande bolo. A língua manoki é esse bolo: muito grande, impossível para uma pessoa de comê-lo em um dia, nem em dois, sem provocar algum desastre. Porém, cortando-o em pedaços pequenos, é possível chegar a comer o bolo inteiro de uma forma confortável. A língua manoki tem muitos aspectos diferentes, que se juntam para formar uma constelação de elementos que chamamos de língua: a fonologia segmental, o sistema tonal, os âmbitos de vocabulário, o vocativo, o imperativo, as classes nominais, o futuro, e muitos mais. Cada um desses elementos é isolado, documentado, descrito e aprendido primeiramente de forma isolada, e posteriormente em conjunção com os outros elementos já adquiridos ou em processo de aquisição.

Figure 5. Figura 1. Exemplo de material didático do Coletivo Watjuho Ja’a.

4.2. Juntos pela terra

As nove aldeias dos Manoki estão situadas na TI Irantxe. Essa Terra Indígena está em um terreno mais seco, de cerrado, sem rios adequados para a pesca. Partes importantes dessa terra haviam sido desmatadas para fazendas e campos de gado, e a floresta nova tem apenas algumas décadas. A zona de cerrado ao lado esquerdo do Cravari não possui animais de caça que possam sustentar uma pequena comunidade indígena como os Manoki, ao contrário das florestas muito maiores e densas da TI Manoki. A TI Irantxe simplesmente não é adequada para sustentar uma população indígena sem levá-la a uma dependência crescente de recursos da cidade.

Em 2017, o povo Manoki começou a fazer expedições regulares ao rio do Sangue, na TI Manoki. Nessas expedições, entre 50 e 100 Manoki viajam para as margens do rio do Sangue e passam alguns dias acampando na floresta, caçando e pescando. Para recuperar literalmente suas terras e também sinalizar sua presença lá. Essa é a terra onde estavam as aldeias dos seus antepassados, onde os seus antepassados estão enterrados, e onde crescem os seus recursos naturais.

Declarada oficialmente Terra Indígena em 2008, esta decisão já passou mais de uma década no limbo do sistema de justiça brasileiro, contestada pelos colonos das cidades vizinhas que preferem explorá-la do que vê-la preservada como território indígena. Lotes dessas terras foram comprados ilegalmente e, de uma forma que mudou pouco em 100 anos, os colonos praticam uma política de fato consumado. Enquanto aguardamos a decisão final da justiça sobre a terra para conceder ou não aos manoki plenos direitos, a invasão da terra ocorre rotineiramente para extrair madeira e até derrubar partes da floresta para fazer pastos de gado.

Uma das razões para as expedições periódicas à TI Manoki é também defender aquela terra. Na Amazônia, os cursos de água são muitas vezes essenciais como rotas de transporte e são um importante foco de atividade. O rio do Sangue não é nenhuma exceção. Para os Manoki, estar presente nas suas terras no rio do Sangue nessas expedições é uma das melhores formas de comunicar a mensagem que eles estão presentes lá, e que não irão embora. Isso pode ser mais perigoso do que parece. Os próprios Manoki tiveram mais de um encontro com capangas armados ao viajar pela TI Manoki. Até agora, isso representou apenas demonstrações de bravata, mas sempre há algum elemento de perigo.

O autor Edivaldo Lourival Mampuche, professor da escola Tapurá da aldeia Cravari, foi um dos principais impulsores dessa iniciativa. Como ele escreveu, “eu tive a vontade de ensinar aos jovens o que a academia não me ensinou, sentia falta dos ensinamentos da mata e que eu não havia aprendido. Por isso fiz com que fosse uma expedição onde envolvesse a escola, e todos podiam ir: crianças, velhos, alunos e pais. Queria ver todos felizes e envolvidos na luta pela homologação da TI Manoki” (MAMPUCHE 2019).

5. Conclusão

O povo Manoki está determinado a ser dono do seu porvir, e a não deixar que as formas de violência infligidas a eles no passado por estranhos determinem seu presente e futuro. A revitalização da língua, que foi roubada deles sem que tivessem nem decisão nem alternativa sobre o fato, resulta literalmente em uma retomada da língua. Assim mesmo, o processo de luta pela homologação da TI Manoki está sendo acompanhado por um processo de retomar a terra de forma literal, estando presentes nela, conectando com ela, e vivendo dela da mesma forma que os antepassados que moravam lá. Terra e língua significam identidade, significam resistência, significam passado e também futuro. Terra e língua significam manoki.

6. Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer aos organizadores e participantes do inspirador encontro Viva Língua Viva, celebrado no Rio de Janeiro em novembro de 2019. Agradecemos também aos povos Manoki e Mỹky, especialmente a geração de anciões lutadores e a geração de jovens que estão tomando o testemunho. Assim mesmo, queremos expressar a nossa gratidão aos dois revisores de Cadernos de Linguística e aos editores do presente volumem. Agradecemos também a contribuição financeira do projeto IPF0252 concedido a Bernat Bardagil pelo Endangered Languages Documentation Programme.

How to Cite

BARDAGIL, B.; KAJOLI, C. D.; MAMPUCHE, E. L. Watjuho Ja’a: reclaimation of language and land in the Manoki nation. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 3, p. 01–15, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n3.id240. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/240. Acesso em: 30 apr. 2024.

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